quinta-feira, 6 de abril de 2017

O Uber, o Ubra e a busca de outro modelo | Maria Cristina Fernandes

- Valor Econômico

PT arrisca-se a se afastar ainda mais do eleitor perdido

Vila Brasilândia, na periferia Norte de São Paulo, não é atendida pelos aplicativos de transporte. Motoristas do Uber fazem corridas até o bairro mas voltam batendo lata porque se recusam a pegar passageiros por lá. A restrição levou moradores locais a criar o Ubra, serviço de transporte com tarifas muito mais competitivas que as do táxi de praça.

A rede de clientes do Ubra reproduz o perfil dos 63 entrevistados pelos questionários alongados a partir da Perseu Abramo. A partir deles, a fundação do PT concluiu que o partido está em confronto com a percepção de Estado que emerge da periferia: burocrático, fiscalista, ineficaz e inoperante para quem quer subir na vida.

Esta semana o PT deu mais um passo para se afastar do eleitor que perdeu na periferia. Proposta do deputado Carlos Zarattini (PT-SP) dificulta o funcionamento não apenas das grandes gigantes do setor como de alternativas surgidas na quebrada, como o Ubra. Confronta decreto da gestão Fernando Haddad, que virou referência mundial e foi copiada em outras cidades do país. A regulamentação paulistana, que completa um ano em maio, vai render aos cofres municipais o suficiente para construir um hospital de 200 leitos na cidade.

O deputado, que foi secretário municipal de Transportes na gestão Marta Suplicy, virou um dos expoentes da frente parlamentar que defende os interesses dos taxistas. Ao assumir a liderança do projeto, o petista tomou o lugar que um dia pertenceu ao deputado Celso Russomanno (PRB-SP), caído em desgraça junto à categoria pela dubiedade no tema durante campanha de 2016 quando disputou a prefeitura da cidade.

A iniciativa petista arrebanhou todos os partidos de esquerda na Câmara, rachou o PMDB e demais partidos da base governista e conseguiu aprovar o projeto por 226 votos a 182. Os taxistas chegaram a acampar em frente à casa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O projeto ainda tem uma segunda votação na Câmara antes de seguir para o Senado. Sua tramitação acelerada é uma reação à regulamentação municipal que se espraia para 48 municípios e o Distrito Federal que já contam com aplicativos de transporte individual.

No resto do mundo o Judiciário tem sido um entrave à expansão do serviço por obrigar as empresas a reconhecer vínculo empregatício com os motoristas. No Brasil, ao contrário, é em decisões judiciais que a regulamentação do serviço se ancora. Depois de esbarrar nas maiorias que os taxistas mantêm nas câmaras municipais, prefeitos e empresas têm recorrido ao Judiciário para liberar o serviço. O destino do projeto aprovado na Câmara não deve ser diferente, a despeito de poucos temas interessarem tanto aos eleitores representados nos parlamentos.

Zarattini argumenta que a uberização é a terceirização elevada à enésima potência e que os valores pagos pelos aplicativos são tão baixos que os motoristas não terão como manter a qualidade dos serviços. Pode ser que tenha razão, mas os argumentos ignoram a concorrência no setor, que abriga empresas com remuneração diferenciada e que requerem até antecedentes criminais dos motoristas, exigência não contemplada na regulamentação federal.

O projeto que acaba de ser aprovado na Câmara tampouco intercede para por fim às máfias de táxi instaladas nas grandes cidades que faz com que uma parte dos motoristas trabalhe pelo menos 14 horas por dia para remunerar proprietários que chegam a ter, em cidades como São Paulo, 300 licenças.

Não bastasse o cartório dos alvarás, os táxis representam um escoadouro de receitas municipais em benefício de uma pequena fatia da população. Nas contas de Eduardo Vasconcellos, da Associação Nacional de Transportes Públicos, apenas na capital paulista os subsídios anuais ao serviço chegam a R$ 250 milhões, uma derrama se considerado que o sistema transporta apenas 1,5% daqueles servidos pelo transporte público. Os paulistanos que se servem de táxi têm um subsídio em sua tarifa cinco vezes maior do que aqueles que usam ônibus. Além das prerrogativas fiscais, os taxistas também gozam de inexplicáveis privilégios como a circulação em faixa de ônibus.

Esta situação é mantida intocada na Câmara Municipal de São Paulo, que ainda preserva lei de 1969, sancionada por Paulo Maluf e abrigo das máfias que atuam no mercado. O Legislativo que mantém os feudos dos alvarás é o mesmo que ficou sitiado nas três oportunidades em que se tentou liberalizar o serviço de transporte municipal por aplicativo. Eram necessários 28 votos. Não conseguiram mais do que 25.

Vereador pelo PSD derrotado na batalha da Câmara paulistana, Police Neto sugere uma transição para minorar o impacto social sobre os taxistas mais desprotegidos, mas não prevê uma longa sobrevida à categoria, a despeito do projeto que acaba de ser aprovado em Brasília. Pela desconexão com o eleitorado, chega a comparar a votação da semana àquela que, no ano passado, derrotou as 10 medidas de combate à corrupção.

A campanha em defesa dos taxistas pode salvar algumas carreiras na Câmara mas ameaça interditar os projetos de poder majoritários do partido. A leitura da pesquisa petista sugere que, para os desencantados do petismo, um alvará de taxista é algo quase tão ultrapassado quanto o diploma de torneiro mecânico.

Zarattini reconhece que pode estar contra a corrente, mas se vale da reforma da Previdência para não se fazer refém da nova hegemonia que o PT parece ter descoberto na periferia paulistana. O sistema brasileiro, explica, não é de capitalização, mas solidário. O benefício não corresponde à sua contribuição, mas serve para financiar a aposentadoria do conjunto da população. O trabalhador da periferia, diz, reclama da falta de equivalência entre contribuição e benefício mas não quer trocar de sistema porque não tem garantia de emprego e teme ficar desprotegido lá na frente se não tiver como contribuir ininterruptamente.

Não parece coincidência que o desgosto do eleitor apareça depois da falência do partido na gestão do Estado provedor. O modelo é caro e parece não haver alternativa senão barateá-lo. Há guildas mais poderosas e custosas que a dos taxistas. Mas num momento em que mais brasileiros fazem bico de motorista e usufruem de tarifas mais baixas, parece difícil jogar mais esta conta para o eleitor.

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