sábado, 1 de abril de 2017

Sem transigir com o abuso – Editorial | O Estado de S. Paulo

Na terça-feira passada, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresentou ao Congresso uma proposta de lei prevendo punições para crimes de abuso de autoridade. Trata-se de uma medida oportuna, já que é necessário atualizar a legislação relativa ao tema, um tanto branda e genérica. Além disso, tendo sua origem na Procuradoria-Geral da República (PGR), a proposta tem mais chance de receber uma análise serena e isenta. Ultimamente, a simples menção a projeto de lei (PL) sobre o abuso de autoridade vinha gerando reações desproporcionais, como se toda alteração legal do tema tivesse a intenção de coagir a Polícia Federal e o Ministério Público. Dentro das pouco inocentes simplificações a que o País tem assistido, projeto de lei sobre abuso de autoridade era visto como manobra contrária à Operação Lava Jato.

A proposta da PGR indica com clareza que o respeito à legalidade, objetivo último da criminalização do abuso de autoridade, é plenamente compatível com a continuidade da Lava Jato. Não é preciso pactuar com qualquer atuação fora da lei para que se combata com eficiência a corrupção. Ao contrário, só é possível perseguir de fato a criminalidade se as autoridades públicas trabalharem dentro da lei.

Desde o ano passado, tramita no Senado um projeto de lei sobre abuso de autoridade (PLS 280/2016), de autoria do senador Renan Calheiros (PMDB-AL). Em relação a esse texto, atualmente em análise pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, a principal novidade trazida pela proposta da PGR é deixar claro que eventual divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, desde que devidamente fundamentada, não configura abuso de autoridade. Isso deveria ser óbvio. Não custa, porém, evitar-se, explicitamente, a chamada criminalização da hermenêutica, com a punição de uma autoridade simplesmente por ter adotado uma interpretação divergente ou minoritária. Eventuais discrepâncias interpretativas estão dentro do exercício regular da função pública e não cabe, portanto, considerá-las como abuso de autoridade.

Outra significativa novidade trazida pela proposta da PGR é a previsão de que os crimes de abuso de autoridade são de ação penal pública incondicionada, incorrendo em crime quem se omitir na instauração de procedimento investigatório para apurar a prática desse tipo de desvio. Pode, ainda, o ofendido iniciar a ação, se o poder público não o fizer. No PLS 280/2016, para propor a correspondente ação penal, era necessária a representação do ofendido ou que o ministro da Justiça fizesse a requisição. Apenas os crimes de abuso de autoridade com várias vítimas ou com risco à vida e à integridade física eram de ação penal pública incondicionada. Como se vê, nesse aspecto, a proposta da PGR é até mais ampla que o texto apresentado pelo senador Renan Calheiros.

Como crime de abuso de autoridade, a PGR propõe que se incluam diversas ações, com natureza e gravidade distintas. Consta, por exemplo, a carteirada, definida como a utilização do cargo ou função pública para eximir-se de uma obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio.

Acertadamente há também a proposta de criminalizar algumas ações relacionadas a tarefas investigativas, como requisitar a instauração de procedimento investigatório de infração penal ou administrativa em desfavor de quem se sabe ser inocente, ou, com pena ainda maior, dar início à persecução penal, civil ou administrativa, sem justa causa fundamentada, contra quem a autoridade pública sabe ser inocente.

Prevê-se ainda a inclusão de crimes relacionados ao desrespeito à presunção da inocência. O responsável pelas investigações que antecipar, por meio de comunicação, incluindo rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação, poderá ser punido com detenção de seis meses a dois anos e multa.

Como se pode ver, essas medidas não dificultam o trabalho investigativo. São antes um aperfeiçoamento para que todos, também os agentes públicos, andem sempre dentro dos limites da lei. A proposta da PGR merece, portanto, diligente análise do Congresso.

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