terça-feira, 25 de abril de 2017

Tarefa inacabada | Gustavo Müller

- O Globo

Todos os presidentes pós-1988 tentaram em maior ou menor grau reformas constitucionais

Em sua obra sobre a República Velha, Edgard Carone definiu como marca daquele período a luta entre a Constituição e a política. De um lado, havia a pressão de setores da elite civil pelo estabelecimento das “regras do jogo” e, de outro, a prática política cotidiana tornava a Constituição como uma peça sem serventia, ou como algo que poderia ser modelado e remodelado ao sabor das circunstâncias. Passados quase 130 anos da proclamação da República, tal tarefa parece inacabada não só, mas, principalmente, no que tange à forma como se dá a prática política.

A aversão brasileira por ritos estáveis e regras universais pode estar, como apontou Sérgio Buarque de Hollanda, nas nossas raízes ibéricas, o que talvez explique as recorrentes rupturas constitucionais, seguidas por tentativas urgentes de “reconstitucionalização do país”.

A convocação da Assembleia Constituinte pela emenda 26 de 1985 — para ficar apenas em um exemplo — visava a estabelecer as regras para o que veio a ser o mais longo período democrático da história brasileira. Todavia, a mesma Constituição já previa uma assembleia revisora e até mesmo um plebiscito no qual era facultado ao eleitor a opção pelo restabelecimento da monarquia.

Por diversas razões, todos os presidentes da República pós-1988 tentaram, com maior ou menor envergadura, reformas constitucionais. Mas é com a crise do “mensalão” e com o início da operação Lava-Jato que há um esgarçamento das regras estabelecidas, seja pelo oportunismo da classe política, seja pelas demasiadas convocações do Poder Judiciário para, inclusive, interpretar o regimento interno da Câmara dos Deputados e do Senado, ganhando relevância o cenário descrito por Carone.

O esfacelamento do sistema partidário e a corrosão da legitimidade politica põem em questão o ordenamento inaugurado em 1988, mas antes de significarem alguma novidade, apenas explicitam a continuidade de um modus operandi no qual se acalenta uma esperança infantil do Constitucionalismo ideal. Tal constatação não significa a defesa da imutabilidade, visto que a degeneração das práticas políticas indica um eventual colapso da ordem em vigor. Mas não há motivo para que se espere uma futura consolidação democrática.

Democracias consolidadas operam com Constituições que, mesmo imperfeitas, esboçam um consenso mínimo. Democracias instáveis, ou de baixa qualidade como a brasileira, criam situações de rupturas constitucionais toda vez que estas se mostram incompatíveis com a prática política.

*Gustavo Müller é professor de Ciência Política da UFSM

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