domingo, 16 de abril de 2017

Um transe que não acaba | Cacá Diegues

- O Globo

“Terra em transe” é o filme mais importante na história do cinema latino-americano e uma das bases do que seria o cinema moderno mundial, a partir do fim dos anos 60

Neste mês de maio, celebramos os 50 anos de lançamento do filme “Terra em transe”, de Glauber Rocha. Um filme sobre a crise política num país da América Latina; e também sobre a crise pessoal de um intelectual no centro desse transe. Um transe que não é somente político, ideológico ou existencial.

Há, em “Terra em transe”, um desejo imenso de ver o mundo de um outro modo, diferente da racionalidade iluminista para a qual estamos todos treinados. Trata-se de encontrar outra forma de olhar para tudo e para nós mesmos; ainda que, como diz Sara, a namorada de Paulo, o herói do filme, “a poesia e a política sejam demais para um homem só”.

“Terra em transe” é o filme mais importante na história do cinema latino-americano e uma das bases do que seria o cinema moderno mundial, a partir desse fim dos anos 1960. De Godard a Pasolini, de Scorsese a Coppola, de Oshima a Kiarostami, de onde você quiser a onde você pensar, o cinema nunca mais foi o mesmo depois de “Terra em transe”.

Apesar de seu sentido igualmente revolucionário, “Deus e o diabo na terra do sol”, o filme precedente de Glauber Rocha, ainda se inspirava numa dramaturgia clássica, em que o brilho da encenação originalíssima não perturbava a estrutura narrativa da obra. Se “Deus e o diabo...” era uma espécie de apogeu do Cinema Novo, “Terra em transe” era um rompimento em direção a um cinema menos retórico, um cinema de puro embate com o próprio cinema.

Glauber amava os atores, tinha prazer em dirigi-los e, não por acaso, sempre trabalhou com os mais consagrados deles, como Yoná Magalhães, Paulo Autran, Paulo Gracindo, Glauce Rocha, Tarcísio Meira. Mas, antes de chamar Jardel Filho para fazer o herói de “Terra em transe”, ele ofereceu o papel a não-atores como o músico Tom Jobim, o jornalista Janio de Freitas e o advogado, então deputado, Raphael de Almeida Magalhães. Era como se ele estivesse desejando sacar da realidade brasileira o sofrimento de sua incompreensão, típico da elite intelectual a que pertencia seu personagem.

Além de representar uma virada decisiva no cinema brasileiro, “Terra em transe” inaugurava o Tropicalismo, movimento que seria batizado, consolidado e consagrado por músicos como Caetano Veloso e Gilberto Gil, poetas como José Carlos Capinam e Waly Salomão, teatrólogos como José Celso Martinez Corrêa, artistas plásticos como Hélio Oiticica, e muitos jovens cineastas que começavam a contestar o Cinema Novo, como Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, autores de obras-primas como “O anjo nasceu” e “O bandido da luz vermelha”.

Na produção da própria geração de Glauber, “Terra em transe” e o tropicalismo também estariam em filmes como “Fome de amor”, “Brasil, ano 2000”, “Os herdeiros”, “Pindorama”, “Macunaíma”. Mas, enquanto na música e no teatro o tropicalismo representava a exaltação de um caráter em formação, no cinema ele era um lamento por uma frustração, o reconhecimento de uma frustração.

“Terra em transe” levou esse lamento a um nível de tragédia sem limites. Sua visão política não é estrategicamente armada, como o faria qualquer analista acadêmico. Ela é a de um sonho (ou pesadelo) trágico, cujas regras narrativas não conhecemos antes do filme. Este anunciava a futura vitória do fascismo cotidiano sobre a inteligência iluminada, como vemos hoje.

A natureza do populismo contemporâneo, de esquerda ou de direita (como distinguir um do outro?), está admiravelmente pressentida em cenas antológicas, como a do comício do congressista interpretado por Modesto de Souza (uma homenagem ao teatro de revista e à chanchada) ou a da chegada da caravana do governador interpretado por José Lewgoy (outra estrela da chanchada), quando, aterrador e provocador, Paulo nos mostra o povo que queremos que nos governe.

O Cinema Novo nascera de um desejo geracional de mudar o mundo. “Terra em transe” põe em dúvida não só a nossa capacidade de mudar alguma coisa como também a de compreender o que deve ser mudado. Ou mesmo e tão simplesmente, compreender o que está acontecendo, através do cinema. “Deus e o diabo...” terminava com uma convocação objetiva, quando Corisco conclamava: “Maiores são os poderes do povo!”. “Terra em transe” termina com Paulo respondendo a Sara por que se dispôs a morrer. “Em nome da beleza e da justiça”, diz ele. Mesmo ainda sendo 1967, já eram outros tempos.

*Cacá Diegues é cineasta

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