domingo, 23 de abril de 2017

Vamos zerar | Cacá Diegues

- O Globo

A Lava-Jato está pondo em questão um sistema de representação. Se tivermos bom senso, ela servirá como elemento para reconstruirmos o país a partir das eleições de 2018

Nesses últimos dias, senti muita inveja de Bruno Borges. Os últimos dias foram os dos vídeos de depoimentos do pessoal da Odebrecht; e Bruno Borges é o rapaz do Acre que sumiu no mundo, desapareceu deixando 14 livros criptografados e signos pelas paredes de seu quarto, igualmente ilegíveis. Bruno não só escapou do que andamos tomando conhecimento, como também não precisa se preocupar com o que pensa sobre o assunto. Se alguém quiser saber sua opinião, não entenderá a resposta.

A resposta é mesmo difícil, complicada, precisa de imaginação. E pode ser, às vezes, incompreensível como os livros e os signos de Bruno. Mas um dia temos que desvendá-la.

Ninguém se salva das apurações da Lava-Jato. Fiéis marqueteiros, amigos do peito, correligionários e sócios entregam seus parceiros, como uma colaboração involuntária ao necessário desmonte do país. Eduardo Cunha e Sérgio Cabral já estão na cadeia; e quase todos os políticos, de todos os partidos, estão fazendo as malas (ou deviam estar) para lhes fazer companhia. Os delatores da Odebrecht, com mais ou menos sadismo e galhofa, seguem expondo seus crimes e pecados.

Temos tido representantes demais na política, sobretudo porque poucos nos representam de fato. Se reduzirmos o número de deputados e senadores, não sentiremos falta dos que vão ficar de fora. Em vez da canalhice da lista fechada, a monarquia eleitoral em que o rei (o chefe de cada partido) escolhe seus amigos para o Congresso, é preciso estender nossa representação aos canais mais abertos da sociedade moderna. Não é possível, por exemplo, ignorar a internet num novo regime político realmente contemporâneo, eficaz e justo.

Para serem exemplares, nossos representantes deviam questionar seus salários elevados, fora da realidade de nossa economia e de suas próprias necessidades pessoais. Rever mordomias excessivas, como carros oficiais, cartões corporativos, aviões da FAB e coisas parecidas. Abrir mão do financiamento público para seus partidos, com os quais nós, os contribuintes que pagamos o financiamento público, não temos nada a ver, mesmo se eventualmente votamos num deles.

Acima de tudo, no tempo atual, nenhum homem público tem mais o direito à privacidade. Isso acabou, não tem mais sentido o público privatizado. Só podemos confiar em um político, no dia em que cruzarmos com ele no mesmo metrô em que costumamos ir para o trabalho.

O que está em questão não é apenas a honestidade dos políticos, mas também a lógica que permite e estimula a propina por serviços prestados às pessoas físicas e empresas privadas, em troca de dinheiro público, a grana da população. Aquilo que os faz acreditar que agir assim é um direito seu, que esse comportamento sem culpa está nas vísceras da formação do país, uma simples tradição inocente. Em nome disso, alguns políticos reivindicam agora uma anistia geral para o caixa 2 e as propinas do passado. Eles prometem que, daqui para a frente, tudo vai ser diferente, como se fossem capazes de vencer, por sua simples vontade (se é que ela existe!), uma cultura de 400 anos, a do controle oligárquico do país.

A Lava-Jato está pondo em questão um sistema de representação. Se tivermos bom senso, ela servirá como elemento para reconstruirmos o país a partir das eleições de 2018, que não podem ser realizadas apenas para eleger mais um presidente que nos vai decepcionar. Essas eleições serão uma oportunidade de zerar tudo, começar de novo. Mesmo que um desses partidos apanhados com a boca na botija saia, por equívoco, consagrado através de uma estrela eleita, “a vitória nas eleições não absolve os culpados”, como escreveu recentemente Fernando Gabeira.

Bruno Borges é que não estava nem aí para tudo isso. Ele conhecia e praticava o “reiki”, antiga sabedoria egípcia. Segundo sua própria voz, o rapaz costumava sair de seu corpo e zanzava pelo espaço, sem saber o que fazer. Como nós. Mas ele, pelo menos, tinha um pique de confiança, na presença de enorme estátua no centro de seu quarto. Era uma sólida estátua de Giordano Bruno (Bruno como ele), o filósofo renascentista condenado, por herege, à fogueira da Inquisição. Entre outras coisas, Giordano Bruno escreveu que era “uma ingenuidade pedir a quem tem o poder para mudar o poder”.

Em 2018, vamos tentar um outro formato, sei lá qual. Não é possível ficarmos onde estamos, se estamos cansados de saber que não deu, nem vai dar certo. Vamos partir para outra. Vai dar trabalho, mas talvez possamos inaugurar um regime com novos instrumentos contemporâneos de regulação, que nos permitam livrarmo-nos do bolor indecente do passado.

*Cacá Diegues é cineasta

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