sexta-feira, 16 de junho de 2017

A letra negra | José de Souza Martins

Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

Ele tem apenas 17 anos de idade. É franzino: parece ter 13. Não chora, não grita, não implora compaixão. Está conformado. Adivinha o que querem seus algozes, um tatuador e um pedreiro, ambos com menos de 30 anos de idade. Seus olhos dizem-no desamparado. É evidente que está assustado. Sabe qual é a pena para quem atravessa o limite de uma sociedade de donos de gado e gente. Caiu no laço. Vai ser ferrado para que saiba e todos saibam que tem quem manda nele.

Antes, implorara que o marcassem no braço, não na testa. Mas o script da tortura era outro. Os torturadores queriam marcá-lo para o resto da vida. Não se tratava apenas de nele inscrever o nome do crime que teria cometido, a suposta tentativa de roubar a bicicleta de um aleijado, coisa que a polícia não confirmou.

Tratava-se de iniciar ali o seu linchamento. Na tradição do justiçamento popular, com aquela marca, será trucidado na rua mais adiante. É pouco provável que sobreviva. Aqueles criminosos inovaram na técnica de linchar. É um dos primeiros linchamentos brasileiros a que os linchadores deram a forma de encenação e performance. Televisão e cinema já não são instrumentos de obras de ficção. O acontecimento da semana passada em São Bernardo do Campo é um precioso documento sobre uma sociedade retrógrada que já não distingue ficção de realidade. A força de um imaginário perverso tomou conta de nossa consciência.

Era parte da crueldade o fingimento dos autores de que a vítima ingressara no estabelecimento como cliente, para fazer uma tatuagem. Como se ela mesma encomendasse o teor da marca que levará. Perguntada, diz: "Ladrão". "Tem que ser uma frase inteira", esclarece o tatuador e diretor da encenação. O pedreiro filma. Ressalta os olhos aterrorizados do garoto, esmera no detalhe da frase cruel: "Eu sou ladrão e vacilão". A tatuagem ironiza a fragilidade da vítima, que se deixou capturar. Além de supostamente tentar cometer um crime, fora incompetente no desempenho criminoso.

O filme foi colocado na internet. Em apenas uma hora teve meio milhão de visualizações, sem contar muitas replicações, uma das quais de um suposto programa noticioso em que o locutor baba de prazer e ódio contra o adolescente justiçado e recomenda aos espectadores que vejam o espetáculo. Um programa de grande sucesso.

Nada disso, porém, tem a relevância de um detalhe assustador e revelador: a passividade e o conformismo da vítima. Ele não é o diferente. Age com a compreensão da mesma lógica de quem o machuca, conhece o roteiro, sabe quais são as palavras que dele se espera. As letras negras que o marcam, como em "A Letra Escarlate", de Nathaniel Hawthorne, é o signo do que é a sociedade em que vive, uma sociedade que estigmatiza para existir. O garoto é usuário de droga, havia vários dias fora de casa. Foi na internet que a família o reconheceu e avisou a polícia, que, em pouco tempo, prendeu os dois criminosos e os indiciou pela prática de tortura.

Um aspecto essencial de toda essa violência é o de que ocorreu no ABC operário e, nele, no mais próspero de seus municípios. O ABC das emblemáticas assembleias operárias do estádio de Vila Euclides. A ocorrência de agora nos fala de uma cultura fascista e neonazista que se difunde no proletariado da sociedade que, supostamente, fazia em seu tempo o discurso de esquerda.

O cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012), em 2003, com o filme "Garotas do ABC", inspirado em ocorrências racistas e neonazistas na região, já havia mostrado a metamorfose: os filhos de operários de esquerda tornavam-se ativistas de extrema direita. Em 2009, uma jovem de 20 anos, filha de um operário metalúrgico de Diadema começou a ser assediada e apupada, estigmatizada, por seus colegas de escola numa universidade da região. Corria o risco de linchamento porque usava saia curta e colorida.

O episódio de agora não é estranho à tendência de radicalização direitista no próprio meio operário. O ABC teve hegemonia política petista durante largos anos e foi ali o laboratório da irresistível ascensão do partido. O PT administrou o país durante 13 anos e São Bernardo durante oito anos. Não conseguiu desenvolver políticas sociais e culturais de emancipação da classe trabalhadora, ressocializando-a para valores propriamente sociais e humanistas. Limitou-se às demandas econômicas, sindicais e corporativas. Gerou uma baixa classe média partidarizada, mas não politizada.

O garoto foi encontrado pela família. O coletivo Afroguerrilha lançou uma campanha pela internet para arrecadar R$ 15 mil para custear a remoção da tatuagem e o tratamento de recuperação do garoto. No fim da tarde de domingo a quantia já havia sido conseguida. Ainda há luz no fundo da escuridão.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “Linchamentos - A Justiça Popular no Brasil” (Contexto), dentre outros.

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