sexta-feira, 30 de junho de 2017

Comunhão de ação e unidade de desígnios | César Felício

-Valor Econômico

Ação da Lava-Jato ingressa no habitat de Michel Temer

O Brasil tem inédita expertise mundial na decapitação de presidentes pelo Congresso, como ensinam os exemplos de 1992 e 2016. A situação inversa, que é a do Legislativo salvando um governante desprestigiado, deslegitimado por investigações judiciais e sem qualquer lastro de apoio popular, é relativamente desconhecida no Brasil. O mais próximo a isso é a votação da Assembleia Constituinte em 1988, que abortou a proposta de antecipar as eleições presidenciais diretas para aquele ano, garantindo que José Sarney continuasse na presidência até 1990.

Nas próximas semanas, a Câmara começa a analisar a primeira das denúncias contra o presidente que a Procuradoria Geral da República enviou, é certo que outras virão no agitado fim de mandato de Rodrigo Janot. É a Lava-Jato entrando na cova dos leões. Será o teste do país para saber se o Legislativo e o Executivo atuam de forma coordenada e possuem majoritariamente o mesmo propósito, que não pode ser outro se não o da preservação mútua frente a uma ameaça externa. Melhor oportunidade para quem quer explodir a Lava-Jato não haverá.

Muito se fala do exemplo italiano, em que a Operações Mãos Limpas foi uma triste transição de um Estado capturado por políticos corruptos para a era Berlusconi. Mas talvez o caso internacional a se repetir aqui no Brasil seja a história colombiana.

Em 1996, o então presidente Ernesto Samper não era acusado de corrupção, mas estava no centro de um processo de financiamento ilegal de campanhas, o chamado "Processo 8.000", que investigava o fluxo de dinheiro do Cartel de Cali para o mundo político.

O numeral "8.000" foi o número dado ao inquérito aberto pela procuradoria colombiana para investigar as planilhas encontradas na casa do contador do narcotráfico. O processo começou em 1995 e pouco mais de um ano depois o tesoureiro da campanha de Samper confessara que havia recebido cerca de US$ 5 milhões, o coordenador da campanha afirmara que o presidente tinha ciência disso e a pessoa que seria o elo direto entre o staff de Samper e o Cartel fora assassinada.

O presidente começou sua defesa afirmando que os malfeitos foram feitos " nas suas costas". Foi apedrejado pela mídia e o cardeal de Bogotá ironizou: "é como um elefante entrar em sua casa e você dizer que não se deu conta". As ruas foram tomadas por manifestações e o elefante tornou-se o símbolo do movimento contra Samper. O presidente foi denunciado pelo procurador geral e o processo foi remetido para o congresso colombiano.

Em paralelo, como se pretendesse dar uma demonstração de distanciamento, o governo colombiano esmagava a liderança do cartel, com a prisão de seus líderes, os irmãos Rodríguez Orejuela.

O "processo 8.000" não atingia apenas o presidente. Catorze congressistas foram encarcerados e seus assentos vazios no parlamento tornaram-se um emblema da falência política. Os desdobramentos do escândalo atingiram até mesmo cantores e técnicos de futebol. Os procuradores avançavam sobre o sistema político em ritmo imparável, sacudindo o país semana após semana. A denúncia contra Samper na Câmara marcou a virada desta tendência.

O então presidente tinha bases políticas sólidas. Pertencia ao Partido Liberal, sigla amplamente dominante no sistema eleitoral até então. O escândalo favorecia de maneira óbvia a oposição na eleição seguinte. O processo colocava não apenas Samper em risco, mas a muita gente da elite política. Diferentemente do esquema "plata o plomo" que marcou a truculência do Cartel de Medellín, o grupo dos Rodríguez Orejuela preferia corromper as instituições do que confrontá-las.

Instada a classe política a se manifestar sobre uma questão jurídica, os deputados colombianos se centraram no fato de que não havia vínculo direto entre Samper e os narcotraficantes. Ele foi absolvido por 111 votos a 43, em 13 de junho de 1996, em uma decisão que chocou a Colômbia e assombrou o mundo. Samper terminaria o governo. O sistema político sobreviveu com regras do jogo relativamente intocadas, haja visto o fato do escândalo da Odebrecht este ano ter afetado a todas as forças do País. O equilíbrio partidário mudou e o Partido Liberal nunca mais elegeu um presidente.

Na história do país vizinho o Legislativo e o Executivo souberam se unir para criar uma rede de proteção que isolou o Ministério Público em sua ofensiva. Interesses divergentes coordenaram esforços contra uma ameaça comum.

Se a história brasileira que começa a se desenrolar no próximo mês vai repetir o roteiro colombiano ainda é cedo para dizer, uma vez que Janot ainda mexe em sua caixa de ferramentas.

As forças políticas no Brasil são mais fragmentadas, o que torna mais difícil a cada liderança entregar a mercadoria contratada. Um exemplo, entre muitos, é o PSDB, que terá grande dificuldade em votar unido.

A debilidade dos partidos na Câmara também torna complexa a construção do pacto salvador da classe política ensaiada há mais de um ano, por mais que seja incontroverso o consenso entre os partidos em dar um basta ao Judiciário e ao Ministério Público. O panorama nebuloso para todos em relação a 2018 deixa as forças políticas receosas de uma retaliação no voto. É certo, entretanto, que Temer não se salvará sozinho. Sua vitória será o triunfo de muitos que tramam em segredo este desfecho.

Marquetagem
Com Podemos, Livres, Novo e Avante, já são quatro os partidos que seguem a trilha aberta pelo Democratas já se vão dez anos. São os partidos que não se dizem mais partidos, que negam a natureza do principal instrumento da democracia representativa. Não há mais a tentativa de em um nome representar uma ideologia, como Partido da Social Democracia Brasileira, ou uma clivagem de classe, como Partido dos Trabalhadores. O negócio agora é o viés marqueteiro: que tipo de sensação desperta no "consumidor" uma sigla que se denomina "Avante"? Na França, ao menos, o partido vencedor das eleições presidenciais, "En Marche!", faz uma alusão às iniciais do presidente da República.

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