sexta-feira, 30 de junho de 2017

O povo meramente hipotético | José de Souza Martins

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

No Brasil, tudo no âmbito político é feito em nome do povo. O parágrafo único do Artigo 1º da Constituição de 1988 nos diz que "todo o poder emana do povo". Isso as Constituições anteriores já diziam, menos a primeira, a de 1824, oferecida ao país que nascia, assinada por Dom Pedro I, que era imperador por graça de Deus e, por via das dúvidas, por unânime aclamação do povo. Povo era apenas uma hipótese, pois aquela Constituição foi decretada em nome da Santíssima Trindade.

Povo que a Constituição não definia: os escravos não o eram, tampouco as mulheres. Muita gente não era povo e não estava representada no exercício do poder. Um eleitor municipal, por ser apenas um pouco rico, valia apenas um terço do eleitor nacional, o que votava em todas as eleições por ser completamente rico. Já no período republicano, extensas parcelas da população brasileira ainda ficaram fora da categoria povo: os analfabetos, os pobres.

Pela primeira vez, a Constituição brasileira de 1988 reconhece a dúvida sobre o que é o povo. Não o agente da intenção do voto, mas o que se expressa no comportamento do votado. Talvez por isso, a Constituição diga que o poder do povo é exercido "por meio de representantes eleitos ou diretamente...". Nesse "ou diretamente", ao que parece, os constituintes preconizaram a possibilidade alternativa da democracia direta, no lugar da representativa. Essa ressalva não resolve o problema, mas esclarece o que é a representação política: os que nos representam já não nos fazem um favor, como sempre se supôs. Nós é que lhes fazemos o favor de abdicar da democracia direta ao elegê-los para que nos representem. Mesmo que o constituinte tenha colocado esse item inexequível na Constituição, ele funciona como nota de rodapé da nossa concepção de representação política e do que é o povo hipotético.

De certo modo, nas manifestações de rua e na judicialização da política brasileira, nos impeachments e nas cassações o sujeito político é esse brasileiro da democracia direta, que dá uma cara carnavalesca à ressalva constitucional. O que tem muito sentido.

É o que confirma a consciência de que a representação política no Brasil é exercida como usurpação política. O eleito não é a pessoa que elegemos. Votamos em máscaras. Embora haja exceções, nas campanhas eleitorais os políticos nos bajulam, mentem, fingem, sem a menor vergonha, para conseguir o nosso voto. Para em seguida, em vez de nos representar, usurparem o voto que lhes demos, ao descumprirem o dever da representação quando defendem interesses que não são os nossos.
Esse é o primeiro roubo na estrutura da corrupção no Brasil. Corrupção é o roubo que vem depois, a consequência, a propina, o suborno, o lobby. Ficamos abatidos com o segundo roubo, mas não com o primeiro, que é o alicerce da roubalheira. É que nossa concepção de roubo se reduz ao roubo de dinheiro. Não incluímos a usurpação política na coleção de itens da rapina politicamente motivada.

Um desdobramento do primeiro roubo é, em nome da democracia, a criação de um sistema político ininteligível, de propósito, para que o povo não saiba exatamente quem está elegendo. É um modo de fazer com que o voto seja um voto de renúncia à representação política. Não raro, o voto do brasileiro é um chute, um acaso e não uma intenção, em face do número antidemocrático de partidos políticos sem qualquer consistência doutrinária. Tanto faz este ou aquele, o que despolitiza a política e desfigura a democracia.

O embaralhamento partidário torna confusa a estrutura política do Estado brasileiro. Os políticos, fazendo política em nome pessoal, acabam impedindo a visibilidade propriamente política dos agentes da representação do povo. Aqui, é impossível reconhecer a orientação doutrinária dos governos. O PT sempre se apresentou como partido de esquerda. Talvez o seja, mas fez 13 anos de governo de direita, como os fatos e ocorrências foram mostrando. Getúlio Vargas foi definido como um governante de direita. Mas o conjunto do seu protagonismo histórico com facilidade pode ser reconhecido mais como de esquerda do que de direita, apesar de notórios fatos de orientação claramente fascista.

O populismo, que marcou o governo Vargas, que marcou, também, o governo Lula, é apresentado como prática política de direita. Mas no Brasil, de um povo capturado ideologicamente pela herança da escravidão, o populismo viabilizou o protagonismo político do povo, ainda que com base numa outra versão da usurpação da representação política, a do reavivamento da mentalidade da senzala. Não é casual que a ideologia da legitimidade da rapina esteja associada entre nós ao populismo. O rouba, mas faz.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Linchamentos – A Justiça Popular no Brasil” (Contexto).

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