quarta-feira, 26 de julho de 2017

Pátria de Sofia | Murillo Camarotto

- Valor Econômico

PSDB também vive o drama das decisões insuportáveis

Diante de um dos maiores solavancos sofridos até aqui pela Operação Lava-Jato, o procurador-geral da República teve que recorrer à polonesa Zofia Zawistowska para justificar a anistia ampla, geral e irrestrita concedida aos irmãos Wesley e Joesley Batista. Nas palavras de Rodrigo Janot, o dilema entre denunciar os donos da JBS e desvendar crimes "dos mais altos dignatários da República" foi uma autêntica escolha de Sofia.

Publicado em 1979 e transformado em filme três anos depois, o best-seller do escritor americano William Styron conta uma triste história acontecida na Polônia em tempos de Holocausto. Capturada pelos nazistas, Zofia foi desafiada a escolher qual dos dois filhos seria executado nos campos de concentração. Desde então, a expressão "escolha de Sofia" vem sendo (pessimamente) adaptada a situações em que qualquer uma das alternativas disponíveis se mostra dolorosa.

Semanas atrás, algumas entidades empresariais de peso, como a Confederação Nacional da Indústria, saíram em defesa do presidente Michel Temer no momento em que ele parecia estar próximo de sucumbir à crise decorrente da delação da JBS. A justificativa do apoio: o país não poderia perder a chance de ver aprovadas as complexas reformas que o pemedebista se comprometeu a entregar em seus pouco mais de dois anos de mandato.

A inequívoca necessidade dessas e de outras reformas - bem como a oportunidade de aprová-las durante um governo fraco nas ruas, mas forte no Congresso - parece ter nublado uma visão mais abrangente da CNI sobre a saúde do capitalismo brasileiro. Os investigadores da Lava-Jato costumam lembrar que uma das mais importantes missões da operação é defender a economia de mercado, definida no Artigo 170 da Constituição e baseada na livre concorrência.

Os esquemas desvendados até hoje mostram quão viciados estavam - e ainda estão - setores importantes da economia. Isso sem considerar o que ainda está por vir, os tais "fatos novos", que prometem inundar outras áreas relevantes do nosso mal parado PIB. Os bancos e a indústria farmacêutica, por exemplo, já se preparam para a tormenta.

As empreiteiras dissecadas pela Lava-Jato começaram agora a apresentar os primeiros resultados dos programas de conformidade que lhes foram impostos. Algumas, inclusive, estão voltando ao cadastro de fornecedores da saqueada Petrobras. Na Itália, no auge da Operação Mãos Limpas, os preços médios das licitações públicas caíram até 40%. Verdade que, pouco tempo depois, com a derrocada das investigações, retornou-se, desgraçadamente, ao status quo anterior.

Mesmo assim, no momento em que trocam um ambiente de negócios mais saudável por uma reforma trabalhista e meia da Previdência (se houver), estariam os empresários sérios diante de uma escolha de Sofia?

Ainda não totalmente compreendida, a Operação Carne Fraca suscita raciocínio parecido. Após um primeiro efeito devastador, foi tida por muitos como exagerada. Pouco tempo depois, no entanto, o Valor revelou o "mensalinho" pago pela JBS a duas centenas de fiscais sanitários. A notícia se espalhou e o ministro da Agricultura chegou a dizer que "queriam destruir a imagem da carne brasileira". Melhor para o país, então, manter na surdina um amplo esquema de suborno a quem deveria atestar a qualidade do produto nacional?

Michel Temer teve o seu dia de Sofia na semana passada. Ao autorizar um aumento de impostos para tentar cumprir uma meta fiscal deficitária em centenas de bilhões, o presidente se viu obrigado a apunhalar pelas costas o pato inflável que o ajudou a assumir o Palácio do Planalto.

Mudando de pato para tucano, o PSDB também vive o drama das opções insuportáveis. Protagonista no processo que se apresenta hoje como "a última esperança" (mas podem chamar de eleição presidencial de 2018), o partido não consegue decidir se prestigia Temer ou se o abandona ao relento. Curtida no tempo, essa (in)definição está cada vez mais encruada.

Quem defende o desembarque quer distância de um governo que ou acaba antes do tempo acusado de corrupção ou continua experimentando níveis estratosféricos de rejeição até um desfecho melancólico em 31 de dezembro de 2018.

Já entre os tucanos que preferem manter a aliança, reina o pragmatismo. Quem se mostra competitivo para disputar o Planalto (Geraldo Alckmin e João Doria) quer evitar que um presidente tampão (Rodrigo Maia) se torne um adversário forte no mesmo campo político. Os que só querem salvar a pele (Aécio Neves) falam em coerência de discurso e em lealdade aos sócios na empreitada das reformas e do impeachment de Dilma Rousseff.

Do outro lado da trincheira, o fantasma de Sofia também assombra. Condenado a quase dez anos de cadeia e com outros quatro julgamentos na antessala, Lula não tem outra alternativa senão retomar o poder. A dramática escolha - ainda pendente - é a do perfil mais eficaz para subir a rampa: "paz e amor" ou "jararaca"?

O modelo vencedor de 2002 não terá mais o dedo mágico de marqueteiros hoje enrolados com a Justiça. Ainda assim, a ternura do ex-metalúrgico pode evitar um avanço da já elevada rejeição, indicador crucial em um eventual segundo turno.

A face meiga do petista, entretanto, frustra os anseios da militância mais aguerrida, que se fez de cega durante anos de trapalhadas na economia e escândalos de corrupção. O "exército" vermelho quer vingança das elites e prefere as atuações de seu líder ao estilo de quem manda prender procuradores e juízes.

Quando a Lava-Jato é acusada de tentar destruir a classe política, Janot costuma dizer que expor os criminosos travestidos de parlamentares é tarefa inadiável. O problema é a dose do remédio e a resistência do paciente. Na Itália, a porção foi desmedida e os principais partidos viraram pó em dois anos, deixando a porta aberta para os "outsiders" - figuras cada vez mais presentes no habitat da política brasileira.

Por aqui, alguns arrivistas ganharam prefeituras importantes (SP e BH) e já exibem boa pontuação nas sondagens para presidente, desenhando cenários curiosos para o segundo turno da "redentora" eleição de 2018. Lula ou Bolsonaro? João Doria ou Joaquim Barbosa? Alckmin ou Ciro Gomes? Luciano Huck ou Marina Silva? Para milhões de eleitores, a alternativa será uma só: Zofia Zawistowska.

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