sexta-feira, 25 de agosto de 2017

A república minimalista | José de Souza Martins

- Valor Econômico | Eu & Fim de Semana

O chocho debate sobre a reforma política é dominado por políticos que advogam pela forma oligárquica da reforma. Os que notoriamente não a querem senão para assegurar-se a permanência no poder. É mais um debate em favor da oculta monarquia de régulos de província que domina até hoje o poder político do país, tenha a forma que tiver. Se for de direita, estão lá. Se for de esquerda, estão lá também.

A coisa vem dos primeiros tempos do Brasil, e persiste. O Brasil independente não teve como se livrar dessa herança. O Brasil republicano, tampouco. A Revolução de Outubro de 1930, menos ainda. A ditadura de 1964 instrumentalizou-a. A redemocratização de 1985 só foi possível compondo-se com ela. O PT só chegou ao poder beijando-lhe a mão esquerda. O governo atual tem que beijar-lhe a mão que sobrou, a direita.

Nestor Duarte, jurista, publicou em 1939 "A Ordem Privada e a Organização Nacional", em que expõe a fragilidade do Estado em face do patriarcalismo e dos interesses privados que representa. Victor Nunes Leal, que foi jurista e ministro do Supremo Tribunal, cassado pelo regime militar, escreveu um livro esclarecedor - "Coronelismo, Enxada e Voto" (1948) - sobre as raízes profundas de nossas dificuldades para construir uma ordem política que nos una como povo em torno de um projeto de nação. Contra ele conspira o localismo municipal. Ramos diversos da mesma árvore do controle do que é público pelo privado.

Seja no presidencialismo de coalizão, seja no presidencialismo de cooptação, o que temos é a ordem política nacional subjugada pelo minimalismo municipal e regional. A ordem política brasileira é governada por um sistema de troca de favores entre os Estados, a União e os municípios, entre as grandes famílias e o Estado, um sistema de compra e venda de poder.

O Brasil nasceu como colônia de uma metrópole que não tinha meios para bancá-la. Dependeu, durante todo o período colonial, da ordem privada, de um sistema de poder controlado pelas grandes famílias, baseado numa economia predatória mediante tributos ao monarca que legitimava simbolicamente o saque. O poder privado construía a Colônia para o rei, que em troca legitimava o saque e aquilo que chamamos hoje de corrupção. Era uma recompensa do governo aos poderosos. No Brasil, de fato, tirando os disfarces, a corrupção nunca foi ilegal. Apesar de numerosíssimos honrados brasileiros, o país não existiria sem ela e do sistema de poder que lhe corresponde.

Os grupos e partidos verdadeiramente democráticos têm que conciliar com o oligarquismo. As desavenças conceituais destes dias no interior do PSDB são indicativas de quanto até ele teve que conciliar com o poder do atraso que é o núcleo desse sistema.

O aspecto mais problemático do minimalismo político brasileiro é que até os grupos, movimentos e organizações ditos de esquerda, se tornaram seus instrumentos. Os governos petistas sucumbiram ao fisiologismo próprio desse pacto de reciprocidade entre o Estado e o poder privado. Fizeram o mesmo que os outros fizeram. A corrupção de que o PT é acusado é indicador da fragilidade do partido popular e dos movimentos sociais em face da força do sistema. A coisa se repete. É com base em sua função fragmentadora que o partido e Lula querem voltar ao poder. Ao insistir em dividir o país em nome da ficção pseudossocialista de classe social, o partido prefere compor com alguns e impor a todos, hegemonia em vez de democracia.

O general Golbery do Couto e Silva, ideólogo do regime militar, em conferência da Escola Superior de Guerra para justificar a abertura política, chamava a atenção dos oficiais para o fato de que o bipartidarismo e o torniquete no sistema político abrira a porta para que a política fosse ocupada pela igreja. A política escapava de seu leito natural. Era preciso reverter o processo. Mas a reversão acabou capturada pelo sistema oligárquico subjacente à política brasileira.

Nestes dias, até os evangélicos estão eufóricos com a possibilidade de ampliar sua representação política com a eventual aprovação do Distritão. O fragmentário do consórcio de religiões isoladamente restritas e insuficientes para a pretensão da hegemonia política que pretendem ganhará mais força opondo à unidade do país a força da religiosidade fragmentária. Em vez de os religiosos aceitarem como limite e condição de suas ambições a precedência da unidade da nação, eles já nos governam mediante, justamente, cooptação. A praça pública está mais vazia do que deveria estar e os partidos políticos preferem a bajulação confortável dos púlpitos. Apenas uma nova versão da política de cabresto. Longe da grande tradição republicana do protestantismo. Até eles!
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto).

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