quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Juíz é vítima de onda contra a liberdade | Eduardo Pizarro Carnelós

- Folha de S. Paulo

Achincalhar Gilmar Mendes tornou-se o esporte preferido do brasileiro neste momento. São comuns os ataques, de leigos ou versados em direito, às decisões e aos pronunciamentos dele.

As críticas se dirigem sobretudo à concessão de liminares em habeas corpus ou aos votos que deferem estes últimos (mas somente quando os libertados têm boa condição socioeconômica) e às manifestações do ministro contrárias ao punitivismo exacerbado que prevalece no Poder Judiciário brasileiro.

As decisões que negam a liberdade (e as há em grande número, de autoria do mesmo Gilmar Mendes), ou aquelas que a deferem para pobres, que são assistidos por defensores públicos, não geram protestos nem ataques, muito menos alegação de suspeição do julgador.

Gilmar Mendes é somente a "bola da vez", até que outro magistrado, como já ocorreu tantas vezes, também emita juízo contra a sanha punitiva. Fica evidente, portanto, que seus críticos são movidos por um sentimento liberticida, que cresce assustadoramente no país.

Embora essa onda contra a liberdade seja incrementada pela manipulação do justo desejo de extirpar a corrupção, a maioria que por ela se deixa levar não se dá conta de que as garantias inscritas na Constituição aplicam-se a todos. Assim, o respeito a essas normas é a única forma de impedir que qualquer um de nós seja alvo de arbitrariedade ou violência jurídica.

Dentre essas garantias estão a presunção de inocência e o direito à liberdade, somente podendo esta última ser restringida ou suprimida na forma disposta na própria Carta Política, e, em caso de prisão anterior à condenação, quando presentes pressupostos e requisitos estipulados pelo Código de Processo Penal.

Ora, os tribunais não apenas podem, mas devem cassar decisão que imponha prisão indevida a alguém, seja este rico, pobre, preto, branco, mulato, analfabeto ou doutor. Não fosse assim, qual seria a razão de ser do habeas corpus e das cortes encarregadas de julgá-lo?

E se as cortes devessem decidir de acordo com a grita muitas vezes ensurdecedora dos que ignoram que podem vir a necessitar um dia da concessão de habeas corpus, muito mais eficaz seria extinguir o Poder Judiciário e transferir sua função aos institutos de pesquisa.

Nesse caso, decrete-se antes o fim do Estado democrático de Direito.

Aos que se regozijam com os ataques ao ministro Gilmar Mendes, sugiro que pensem na hipótese de serem acusados da prática de crime.

Gostariam, nessa situação, que o juiz respeitasse ou não as garantias constitucionais e o ordenamento jurídico?

Lembro-me de preciosa lição do extinto Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, de autoria do hoje desembargador aposentado Marco Nahum:

"Ao juiz criminal cabe a função de resguardar e proteger os direitos individuais do homem diante do poder punitivo do Estado. Esse é o sentido desta decisão. Impedir que o poder punitivo do Estado violente os direitos individuais do paciente".
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Eduardo Pizarro Carnelós é é advogado criminalista. Foi presidente da Associação dos Advogados de São Paulo e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça

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