terça-feira, 15 de agosto de 2017

Meta fiscal e regra fiscal |Francisco Lopes

- Valor Econômico

Quadro fiscal vai se reverter drasticamente em 2018 e o déficit poderá ser reduzido a menos de R$ 130 bilhões

Nosso texto provocador sobre a irrelevância do "rombo fiscal", publicado no Valor de 2 de agosto último, mereceu até um puxão de orelha na coluna de Elio Gaspari. Este ícone do jornalismo brasileiro questionou nossa autoridade para afirmar que o rombo previsto para 2017 não deveria ser motivo de preocupação nem da mídia nem do governo. Acontece que não se trata de questão de autoridade, apenas de lógica.

Alguns analistas observaram que, como a Emenda Constitucional 95 (EC95) não aboliu a Lei de Responsabilidade Fiscal, temos agora duas metas fiscais, o teto para os gastos e a meta de déficit primário da Lei Orçamentária Anual (LOA). Logo não seria correto enfatizar uma em detrimento da outra.

Existe, porém, uma diferença fundamental. A meta de déficit anual, ao contrário do teto dos gastos, pode ser redefinida a qualquer momento por projeto de lei. É semelhante ao orçamento executivo de uma empresa que funciona para avaliar a eficácia da gestão e produz apenas uma pressão moral se houver necessidade de revisão.

A EC95 é muito diferente: ela criou uma regra fiscal que só poderá ser alterada por nova emenda constitucional. A cada ano são definidos tetos para quinze diferentes órgãos do governo. Os tetos são calculados com base na taxa de inflação em doze meses do IPCA até junho do ano anterior. Não há possibilidade de revisão: a variação percentual dos tetos seguirá sendo calculada a cada ano sem levar em conta se foram cumpridos ou não.

No caso de descumprimento o órgão responsável ficará automaticamente sujeito a restrições severas por determinação da norma constitucional. Ficam proibidos: qualquer reajuste de salários, a criação de novos cargos, a contratação de pessoal, a realização de concursos públicos, a criação de nova despesa obrigatória ou o reajuste de despesa obrigatória acima da inflação. Ou seja, o órgão fica com gastos restringidos até que volte a se ajustar.

Esta rigidez e automatismo é o que dá força à regra fiscal da EC95 e garante sua efetividade no médio e longo prazo. Como o cálculo do percentual de reajuste para cada ano não leva em conta o crescimento real da economia, pode-se ter certeza que a razão entre o total das despesas e o PIB vai declinar ao longo do tempo. Na medida em que o total das receitas tende a acompanhar o crescimento do PIB fica garantido que eventualmente surgirá um superávit primário, permitindo a redução da dívida pública como proporção do PIB. Ou seja, a EC95 criou uma regra fiscal que produzirá automaticamente o necessário ajuste fiscal como consequência do crescimento econômico. Sua essência é esta: ajustar crescendo.

A base do nosso regime fiscal é agora a regra fiscal da EC95. O balizamento anual da LOA continua servindo apenas para organizar a execução dos gastos públicos dentro dos limites da regra. Serve também para monitorar a evolução da receita pública, já que para obter o desejado ajuste fiscal via crescimento é fundamental que o total das receitas acompanhe a evolução do PIB nominal. Para isso é importante limitar o volume de renúncias fiscais e sua evolução ao longo do tempo.

Pode-se entender então a aparente irreverência ao criticar a preocupação exagerada com o rombo fiscal. Enquanto a regra fiscal da EC95 estiver em operação podemos estar tranquilos que o ajuste fiscal está em andamento.

Adicione a isto o fato, corretamente apontado por Fernando Montero, de que a LOA 2017 parece ter sido construída com uma previsão grosseiramente equivocada para a evolução das receitas. O projeto de lei adotou um cenário de projeção muito inflacionado, com crescimento de 1,6% no PIB e inflação de 4,8% no IPCA. Mas mesmo que o crescimento nominal do PIB ainda assim fique próximo de 6% em 2017 (por exemplo, com crescimento real do PIB de 0,5% e inflação de 5,5% no deflator implícito), a projeção de receitas da LOA parece muito exagerada. A evidência histórica não permite que se projete crescimento de 10% na receita líquida quando se espera crescimento de 6% no PIB nominal, já que o coeficiente de elasticidade renda da receita nunca é superior a 1,20 e tem estado mais próximo da unidade nos últimos anos.

Cabe ainda enfatizar dois fatos importantes para o correto entendimento da questão fiscal. O primeiro é que, trabalhando com números aproximados de bilhões de reais, podemos observar que em 2016 a receita líquida foi de R$ 1.090, a despesa foi de R$ 1.250 e o déficit primário do governo central foi de R$ 160. Se tivermos em 2017 o crescimento de 7,2% na despesa fixado pela EC95 e um crescimento de 7% na receita líquida, como resultado de um crescimento de 6% no PIB nominal, o déficit do governo central ainda será de R$ 173, superando os R$ 160 de 2016. Só poderia ser igual a R$ 139 com crescimento de 10% na receita. Não dá para não concluir que a revisão da LOA será apenas uma consequência lógica do erro grosseiro na projeção das receitas.

O outro fato importante é que em 2018 o quadro vai se reverter dramaticamente. A regra fiscal vai limitar o crescimento das despesas em 3% e poderemos ter um crescimento da ordem de 7% no PIB nominal (por exemplo, com crescimento de 2% no PIB real e inflação de 5% no deflator implícito). Neste caso a receita líquida poderá ter também crescimento superior a 7%, produzindo uma redução de pelo menos 25% no déficit primário. Um déficit da ordem de R$ 170 em 2017 poderá ser reduzido para menos de R$ 130 em 2018.
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Francisco Lafaiete Lopes, PhD por Harvard, é sócio da consultoria Macrométrica e ex-presidente do BC

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