domingo, 10 de setembro de 2017

Um depoimento para a história que um dia se contará | Marco Aurélio Nogueira

- O Estado de S. Paulo

Antes que os engulhos da indignação te sufoquem, você fica tentando descobrir o que está a passar na cabeça de Palocci durante as tratativas para conseguir uma delação premiada e no depoimento a Moro, em que fulminou Lula, Dilma e o PT com vários megatons de flechas envenenadas.

Por que fez o que fez, falou o que falou e do jeito que falou? A pergunta ressoa em vários ambientes e análises, Por certo comporta muitas explicações.

Foi um depoimento sereno e calculado. O ex-ministro falou com calma, tentando ser preciso, relatou detalhes e conversas sórdidas, contou de sítios, apartamentos, propinas e vantagens ilícitas como se estivesse conversando com amigos numa mesa de bar. Só faltou sacar do bolso uma agenda com tudo anotado. Insinuou que poderá fazer isso, caso o juiz assim o deseje.

Mas Palocci não jogou conversa fora, como se faz em um papo de bar. Concatenou e amarrou tudo direitinho, para justificar o prêmio que almeja com a delação. Mostrou saber perfeitamente o que fazia e quem pretendia atingir. Não apresentou provas, mas pôs na mesa uma narrativa difícil de ser contestada. No centro dela, não pareceu haver o desejo de prejudicar quem quer que seja. Falou mais alto a voz do interesse próprio.

Em suma, coisa de profissional, de quem sabe o passo a ser dado e tem uma estratégia, com as devidas rotas de fuga. Foram postos na mesa os dotes que o fizeram ser escolhido articulador de Lula, homem forte no início governo Dilma e elo de ligação com o empresariado. Ao revelar o “pacto de sangue” entre Odebrecht e Lula – que incluiu sítio, terreno, apartamento, as famosas palestras a 200 mil reais e uma “reserva de 300 milhões” –, Palocci cruzou o Rubicão: tornou-se um acusador. É assim que está tentando assinar seu próprio pacto com Moro. Sendo Palocci quem é, com certeza ele sabe que precisará derramar muito sangue para obter algum tipo de benefício expressivo. Ou seja, terá de entregar mais coisas, valorizar o próprio passe.

Aí você se dá conta de que Palocci está sendo humano, demasiadamente humano. Revela-se igual àquelas pessoas que são como camaleões, que assumem várias personasconflitantes e se sentem à vontade em cada uma delas. Indivíduos que prezam a própria pele mais que qualquer outra coisa: que fazem da pele, a causa. Que querem sair sempre bem na foto, ter sucesso em tudo que fazem. E que têm medo, muito medo, de perder o que conseguiram. Além disso, Palocci parece ter enorme predisposição para sobrepujar os que com ele tramaram e nele confiaram: por que somente eu é que pagarei o pato?

Não se deveria crucificar Palocci. Os que o conhecem juram que ideologia ou firmeza ideológica nunca foram seu traço forte. Ele sempre esteve alinhado com a ala mais “pragmática” do PT, desde os tempos já remotos da universidade e de Ribeirão Preto.

Os petistas mais ardorosos talvez o convertam em Judas, agitando a pecha infamante de “traidor”. Outros talvez o vejam como vítima, um coitado que não aguentou a pressão e entregou dedos e anéis para se livrar de 12 anos de cadeia. O Diretório Nacional do partido emitiu nota, por exemplo, dizendo que Palocci foi “pressionado a fazer acusações sem provas”. Mas Dilma bateu duro, como de costume: o ex-ministro mentiu, seu depoimento “é uma ficção”. Comparações com Dirceu, o último “guerreiro do povo brasileiro”, são cabíveis, mas não explicam nada.

É recomendável, nesse caso, que se dê o devido relevo às nuances da psique humana, ao lado diabólico que integra a natureza dos homens e mulheres, os assusta e transfigura. Todos, afinal, podem se deixar levar por seus demônios internos ou fazer escolhas em nome da luta para manter a liberdade pessoal — luta essa que pode perfeitamente passar por cima de lealdades e ideologias.

Seja como for, o depoimento de Palocci caiu como uma bomba no colo de Lula, que terá uma explicação a mais para dar, ainda que se finja de morto. Pode ter sido parte da estratégia, pode ter sido um jeito de dar o troco e socializar o prejuízo, pode ter sido um artifício para proteger a psique fragilizada. A resposta só é importante para quem deseja entender a biografia do ex-ministro. O fato é que o depoimento entrará para a história e pode ajudar a que se compreenda melhor quão fundo se chegou na corrupção da nossa frágil República.

Se isso, porém, mudará alguma coisa no destino dos personagens envolvidos e na dinâmica política nacional, aí são outros quinhentos.

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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp

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