sábado, 21 de outubro de 2017

Farinha pouca – Editorial | Folha de S. Paulo

A controvérsia em torno da farinata promovida pelo prefeito João Doria (PSDB) reúne, em realidade, escassa substância. Trata-se de uma ideia defensável, mas apresentada como solução para uma carência inexistente —ou, no mínimo, mal definida.

Ninguém há de negar que diminuir o desperdício de comida constitui um propósito racional e elogiável. Segundo a prefeitura paulistana, só nas feiras livres da capital se jogam fora diariamente 160 toneladas de alimentos in natura.

Supermercados e indústrias também podem precisar descartar produtos em vias de perder a validade.

Tal é o alvo do processo de desidratação proposto pela Plataforma Sinergia, organização sem fins lucrativos ligada a grupos católicos da qual pouco se ouvira falar até que Doria gravasse vídeo elogiando um biscoito farináceo feito com o granulado.

O produto logo seria depreciado como "ração" por adversários do prefeito, assim como por nutricionistas e celebridades "gourmet" que se precipitaram nas críticas sem saber ao certo o que deploravam. A maior parcela de culpa por esse debate desinformado, contudo, cabe ao próprio prefeito.

Doria prometeu distribuir até o fim do mês a farinata —que nem começou a ser produzida em escala industrial— para famílias pobres. Em seguida, disse que iria incluí-la na merenda escolar, desistindo depois. Em seu açodamento, deixou patente que não tem plano concreto algum para o preparado.

Se tivesse, já estaria feito o percurso previsto na legislação municipal para que qualquer alimento entre no cardápio das escolas.

Isso depende da Coordenadoria de Alimentação Escolar, ligada à Secretaria de Educação, à qual cabe planejar e executar o abastecimento das cantinas, mas que aparentemente não foi consultada.

Tampouco foi prudente o alcaide aventurar-se no que se avizinha de propaganda religiosa ao distribuir diante de câmeras os biscoitos saídos de um jarro com adesivo de Nossa Senhora. Como quem oferece hóstias, declarou-os "abençoados". Na liturgia de um Estado leigo, caberia mais circunspecção.

Não há notícia de que a merenda das escolas paulistanas necessite de complementação. Não se sabe quantos pobres no município passam fome, como alega Doria, secundado pelo arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer.

Estancar o desperdício de alimentos? Claro, com política pública bem formulada. Não há por que apregoar, contudo, que a farinata vai erradicar a fome na capital.

Tal flagelo, se um dia for bem quantificado, deverá revelar-se muito localizado; mais comuns, decerto, são casos de alimentação inadequada, muitas vezes decorrentes de falta de informação sobre os nutrientes e suas fontes.

Problemas do gênero são atenuados hoje por programas de transferência de renda e pelos 22 restaurantes da rede estadual Bom Prato mantidos na cidade.

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