quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Pau para Chico, luva para Francisco | Maria Cristina Fernandes

- Valor Econômico

Vigilância mitigada do trabalho escravo revela fatura ilimitada

O afrouxamento no combate ao trabalho escravo no pacote que reabilitou o senador Aécio Neves e está para derrubar mais uma denúncia contra o presidente Michel Temer deu prumo e coerência às metas deste governo.

A insegurança em relação aos poderes do Judiciário sobre seus destinos imprimia condução errática àqueles que se assenhoraram do poder no ano passado. Mas a tibieza dos onze supremos em prosseguir em suas diversificadas releituras da Constituição revigorou os governistas.

Com uma camiseta "Criança nasce para ser amada, não para ser abusada" por baixo do paletó, o senador Magno Malta resumiu a reabilitação de Aécio: "Pau que dá em Chico tem que dar em Francisco". Na semana que rendeu homenagens ao trabalho escravo, a metáfora não poderia ter sido mais adequada.

O Supremo não exerceu o privilégio de errar por último. Optou por ser o primeiro. Decano em mandatos e processos, o senador Jader Barbalho explicou para a toga as regras do jogo dos Chicos e Franciscos. Não se lhe acusem de incoerência. Ao contrário do Supremo, ele decidiu da mesma forma contra o ex-senador Delcídio Amaral.

Com a toga sob seus pés, os governistas ficaram liberados para a releitura da justiça social como princípio constitucional. O pau começou pelas regras que protegem o trabalho. Como venceu a ideia de que a sova é atalho para a modernidade, agora bateu naquelas que repelem a escravidão.

Entre um e outro, desenrolou-se o espetáculo do PMDB no poder. O pau que desmontou os órgãos de fiscalização, da carne podre às florestas, não bateu nos devedores, agraciados com o perdão de dívidas mais generoso da história. O pau da PEC dos Gastos detonou programas sociais e obras públicas, mas prescinde das multas sobre planos de saúde que descumprirem contratos e está para reduzir, a 10% do valor inicial, as penalidades a serem impostas a ilícitos bancários.

O PMDB constituiu-se como uma exitosa federação de interesses porque logo se deu conta de que, mais importante do que traçar rumo e persegui-lo, é partilhar os despojos. Se o conjunto de delações tem alguma serventia é a de mostrar como cargos-chave de bancos públicos, ministérios, autarquias, agências reguladoras e relatorias de projetos no Congresso abrem o baú da felicidade. Tirante os petistas, barrados no baile, os beneficiários, antes e depois da Lava-jato, são os mesmos.

Nessa partilha, o presidente da Câmara porta-se como credor do presidente da República. A publicidade dada a um delator que acusou a compra de votos pelo impeachment mostrou que Rodrigo Maia ainda avista chão para o encontro de contas deste governo com seus fiadores. O avanço de seu partido sobre a relatoria do projeto de lei que normatiza a leniência dos bancos às vésperas da votação da segunda denúncia é apenas parte desta fatura. Depois que ruralistas puseram o afrouxamento na vigilância do trabalho escravo na conta e levaram, o céu, ou melhor, as eleições de 2018 são o limite.

Os governistas precisam conservar ou ampliar seus postos de poder para manter a capacidade de enfrentar o Judiciário. Ao fortalecer os grandes partidos, as novas regras eleitorais os ajudam, mas não bastam. As sessões gêmeas da semana que salvaram Aécio e Temer mostraram como os tucanos têm seu destino cada vez mais atrelado ao PMDB.

Basta ver o que se passa no segundo maior Estado da federação, do qual Aécio e seu grupo foram desalojados em 2014. Denunciado junto ao Superior Tribunal de Justiça, o governador Fernando Pimentel, hoje o cargo mais importante exercido por um petista no país, chegou a ser dado como carta fora do baralho. Hoje sua reeleição é reconhecida como o cenário mais provável até por adversários. Entre outras razões porque o outro lado tem um rol ainda mais vicejante de nomes com contas a prestar.

Pimentel elegeu-se com um vice do PMDB citado na delação de Lúcio Funaro como o facilitador-mor dos negócios da JBS no Ministério da Agricultura. Hoje o vice é um dos artífices de uma chapa que reuniria tucanos e pemedebistas para enfrentar o governador. O primeiro passo seria afastar o PMDB do PT, mas Pimentel tem anticorpos contra a operação que se alimenta nas hostes do Planalto.

O vice-presidente da Câmara dos Deputados, Fábio Ramalho, uma das lideranças mais populares da Casa, tanto opera como articulador regional do governador quanto na arregimentação de votos da bancada mineira para o Planalto. É também o maior adversário à candidatura ao governo do atual presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e seu correligionário.

Mas a amplitude de uma aliança que ainda pode vir a reunir o DEM de Rodrigo Maia não basta para dar competitividade ao deputado de primeiro mandato. O nome natural seria Antonio Anastasia, mas o senador tucano resiste a emprestar sua estampa à maculada empreitada.

Se o ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, não se apresentar à disputa pelo Palácio da Liberdade, o governador tem mais chance de virar réu no STJ, o que não impediria sua candidatura, do que de encontrar adversário capaz de defender, com sucesso, o legado aecista.

Em viagens pelo interior constrói a imagem de gestão que compartilha dificuldades. Tá longe de fazer tudo o que prometeu, parcela salários, mas, ao contrário do antecessor, não constrói palácios para governar. Trocou o slogan "governo de todos" para "diálogo, equilíbrio e trabalho". Ao bordão dos Neves, "Minas, teu primeiro nome é liberdade", apôs o de que o Estado é o único que tem uma profissão (mineiro) por gentílico.

Mas o maior ativo do governador do Estado-chave para a aliança entre Temer e Aécio é a presença em seu palanque do maior eleitor de Minas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um terço dos eleitores do Estado vota no candidato que Lula indicar, de dentro ou de fora das grades.

O favoritismo de uma dupla encalacrada na justiça não deveria surpreender. É filho dileto do monumento à impunidade e à desfaçatez construído pela aliança entre PMDB e PSDB. O destino de Aécio e Temer e os rumos deste governo mostram que os poderes da República têm pau para Chico e luva para Francisco.

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