sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Fernando Abrucio: Começou a campanha, mas faltam as ideias

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

A segunda votação que livrou, mais uma vez, o presidente Temer do impeachment pode ser um marco para muita coisa, dependendo do freguês. O governo espera que agora possam ser retomadas as votações de reforma econômica. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), e talvez alguns partidos da base aliada, desejam que se inicie uma nova fase, com a maioria congressista ditando a agenda. A oposição quer que o governo se pareça cada vez mais com o fim do mandato de Sarney. Todas as apostas foram feitas e a campanha presidencial começou efetivamente.

De agora em diante, começarão as disputas dentro dos partidos, serão lançados novos nomes a todo momento, as pesquisas se tornarão mais regulares e as alianças políticas, principalmente as nacionais, mas também (em menor medida) as estaduais, darão os seus primeiros passos. Claro que no início será um jogo de tentativa e erro e não se pode se esperar que tudo será decidido rapidamente. Ao contrário, de agora até agosto do ano que vem, muita água vai rolar. Mas as comportas foram abertas com a votação da segunda denúncia contra Temer.

Isso não quer dizer que o governo acabou. Ainda há lances dentro desse jogo, que depende de quatro questões. A primeira é como será refeita a relação entre Temer e sua base congressual. Se o objetivo for votar emendas constitucionais, será difícil dividir os cargos do Executivo federal conforme a lealdade das últimas votações. É só fazer contas para perceber que muitos "traidores" terão de estar juntos com os "compadres" do presidente. Criar essa união é uma tarefa hercúlea.

Além disso, a energia do governo vai depender, em segundo lugar, do quanto ele vai ser capaz de provar que será ainda importante para a votação dos deputados em 2018. Aqui, há elementos para os dois lados. Em um deles, não se pode negar que em uma campanha "mais pobre" como será a do ano que vem, recursos do governo federal podem fazer alguma diferença na hora do voto, principalmente para os congressistas mais voltados a distritos eleitorais mais dependentes do Estado e com menor competição política. Mas há o outro lado: será difícil defender um presidente com a menor popularidade da história recente. Só que essa fraqueza também é um elemento que serve como barganha para que grupos de parlamentares, como os ruralistas, procurem tirar o máximo possível de vantagens frente ao incumbente cada vez mais próximo da figura americana do "pato manco".

De todo modo, fica a pergunta no ar, decisiva para se saber qual energia terá o governo Temer até, pelo menos, o meio de 2018: com quem ficarão os congressistas, com as benesses federais que podem ajudar na luta contra os "desafiantes", ou deixarão de apoiar o presidente com medo de perder votos? Talvez não seja uma escolha para ser feita num único momento do tempo e, por isso, o prazo de validade das votações congressuais acabará aos poucos, em modo gerúndio.

A manutenção da força do presidente junto ao Congresso também dependerá, em terceiro lugar, das pressões e benesses advindas da economia. Óbvio que o leitor achará estranho isso, uma vez que os congressistas votaram reformas econômicas, ao menos até recentemente, sem que tivessem tido o benefício de o povo ter ficado mais feliz - em vez disso, os cidadãos ficaram mais pessimistas no curto prazo. A explicação para esse comportamento está no fato de que até a votação da segunda denúncia contra Temer (podendo incluir aí a decisão do Senado em relação ao caso Aécio Neves), houve uma aliança de boa parte da imensa base governista em torno da salvação dos políticos que vêm sendo investigados pelo sistema de Justiça. Sabiam que ganhariam antipatia da opinião pública, e criaram um anteparo: votariam temas que levariam, segundo seus propositores, à modernização do país. O mercado gostou e muita gente bem-intencionada, que tem reflexões importantes sobre o futuro do país, calou-se nos últimos meses.

A política brasileira sempre surpreende, e isso se acentuou nos últimos tempos. Mas se nada de extraordinário ocorrer, o mais provável é que Temer e sua tropa de choque política conseguirão chegar até o fim de seus mandatos ou gestões. Portanto, o intercâmbio entre as votações antipáticas e simpáticas à opinião pública já não é mais tão importante. Só mudará essa situação se dois extremos acontecerem: uma crise brutal da economia ou uma melhora retumbante em dois meses. Nenhuma das duas tem grandes chances de ocorrer.

Mas alguma coisa será votada porque também há um compromisso tácito, talvez até de parcela da oposição, de garantir que o país possa ser entregue ao próximo presidente razoavelmente em ordem. Não havia esse compromisso em relação a Sarney. Por ora, parece que o Brasil aprendeu alguma coisa com o passado, sobretudo por conta do enorme efeito da recessão. Mas não fiquem felizes, leitores: podemos desaprender rapidamente, basta que a economia ganhe força e adiamos as discussões sérias.

Feito esse quadro geral, é possível dizer que a contagem regressiva para 2018 já começou, mas o presidente Temer conseguirá ainda, por algum tempo (não sabemos quanto), ter uma base congressual que evite a desorganização econômica do país. O quanto isso significará de votações de novos elementos de ajuste, é difícil prever em que medida (quantos e quais projetos, por exemplos). O mais complicado, com certeza, é a votação da Previdência, e os congressistas, em sua maioria, parecem crer que já não é preciso agradar dessa maneira o mercado - como se o debate fosse só isso - para se manter no cargo e até obter a reeleição.

E aqui entra o quarto fator que pode tirar o sono do presidente Temer. Trata-se da dúvida sobre o quanto da campanha presidencial vai avançar neste fim de ano. O lançamento de candidatos, de possíveis chapas, começa a tomar o lugar do debate congressual, num momento em que o tempo começa a voar lá pelos lados de Brasília. Para o governo, quanto mais demorado for esse processo, mais energia e atenção ele terá do restante do sistema político. Por exemplo, uma definição mais rápida sobre o nome do presidenciável do PSDB mexerá com boa parte da base governista, deixando todos em polvorosa, cada qual buscando o seu lugar.

Minha impressão, e posso estar errado, é que a campanha presidencial - e, em menor medida, a estadual - começou a ganhar um enorme espaço na agenda dos congressistas, mais rapidamente do que gostaria o presidente Temer.

Só que o momento atual da campanha se concentra basicamente em nomes, com seus aliados e adversários. Nem sabemos quantos se colocarão como possíveis pretendentes - e há espaços para surpresas e nomes novos. O mais provável é que tenhamos a eleição presidencial mais fragmentada desde 1989, embora a tendência é que 2018 não ultrapasse o recorde do primeiro pleito da redemocratização.

Diante do que tem ocorrido neste início de temporada de surgimento de (possíveis) pretendentes presidenciais, fica a pergunta: multiplicação de candidatos, deserto de ideias? Por mais que seja muito cedo, o trauma da eleição de 2014 precisa ser relembrado. É preciso que os principais concorrentes, e seus partidos e coligações, apresentem projetos claros à população, definindo prioridades, meios para alcançar esses objetivos e mantendo um espaço para o diálogo, sem incorrer no populismo nem no tecnocratismo, porque ninguém governa o Brasil sozinho e de forma sectária.

A coragem de tocar nos principais dilemas do país será decisiva. Depois da enorme turbulência política e econômica, trazer novas (ou velhas) falsas soluções terá um efeito perverso sobre a confiança nas instituições democráticas brasileiras. Isso não quer dizer que a população queira ouvir o amargo das propostas. O espaço para respostas fáceis é grande hoje por conta da falência do Estado em garantir bons serviços públicos e os direitos dos cidadãos, particularmente dos mais carentes.

Mas também há lugar para aqueles que buscarem mostrar o que é possível e o que é ilusório, porque há uma sensação enorme da sociedade, já medida pelas pesquisas de opinião, de que ela foi engabelada duas vezes. Primeiro, quando acreditou que não havia crise, e acordou com a recessão no governo Dilma. E, segundo, quando acreditou que o impeachment tinha sido feito para moralizar o país - e viu que quem tinha derrubado a presidente era a parte maior do crime.

Pode parecer idealismo barato acreditar numa disputa baseada em projetos e propostas de políticas públicas, e não em visões messiânicas ou salvacionistas. Isso porque a polarização que tomou conta do país dificulta o debate racional e equilibrado. O histerismo e ser contra alguém ou algum grupo se transformaram no modelo dominante. Porém, se não defendermos uma outra forma de se fazer política, o dia seguinte da eleição vai ser desastroso. Por isso, a única coisa a se comemorar em relação ao início precoce da campanha é que teremos mais tempo para discutir ideias para reerguer o país, gerando uma pauta congressual que vá além da salvação dos próprios políticos.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP

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