sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Marco Aurélio Nogueira: Precisamos falar sobre o Huck

- O Estado de S. Paulo

Pesquisa Barômetro Político Estadão-Ipsos divulgada hoje evidenciou o que se sabia: Luciano Huck é uma figura popular e goza de uma imagem positiva junto à opinião pública brasileira. A aprovação ao seu apresentou um salto de 17 pontos porcentuais desde setembro, passando de 43% para 60%. Já a desaprovação caiu de 40% para 32% no mesmo período. Deixou Lula comendo poeira.

No universo mais propriamente político, porém, a desconfiança é grande, a crítica se espalha, corrosiva. Como assim, Luciano Huck candidato a presidente?

Ele vem embalado pela ideia do novo em política, algo sempre controvertido e sujeito a muitas ponderações. Novo ou novidade? Algo novo, em política, não se apoia em currículo, fama ou visibilidade, mas em ideias, propostas e articulação, de modo inclusive a que se façam as devidas ligações com o que há de “velho” na vida.

Os outsiders sofrem vetos generalizados e, em geral, têm vida curta. Dificilmente dão certo, ate porque não se caracterizam por possuir dotes organizadores expressivos, conhecimento dos ritmos da vida pública e paciência para contornar obstáculos, estender-se em negociações demoradas, engolir sapos e cascáveis. Ou seja, são estranhos no ninho e tendem a ser forçados a um aprendizado longo. A ideia de carreira política cabe aqui: não se começa por cima, mas por baixo e pelas margens. Não é preciso ter sido vereador ou deputado para postular uma candidatura presidencial, mas o manual do bom-senso diz que tal experiência funciona como uma espécie de vestibular, de preparatório, um recurso que ajudará mais à frente.

Outsiders dificilmente entram de forma triunfal no primeiro plano da política. Há exceções, claro. Lula não fez carreira e era um outsider quando enfrentou Collor em 1989, outro que só não era um estranho no ninho porque vinha de família entranhada na política. Lula talvez tenha perdido justamente por ser um outsider. Tentou ser deputado, foi eleito mas nada fez com o mandato, foi um fiasco. Seu vestibular foi a vida sindical. Dilma foi inventada por Lula, mas não era uma estranha no ninho. Não tinha talentos especiais, nem sequer currículo ou visibilidade, mas esteve sempre nas proximidades do poder, conhecia alguns dos caminhos.

Ah, mas há Emmanuel Macron! Nada disso. Ele pisou num longo terreno antes de se lançar candidato. Foi ministro, conviveu com políticos e governos, aprendeu um monte de coisas. Venceu não porque era “novo”, mas porque soube perceber certos sinais emitidos pela vida social francesa e os incorporou a uma linguagem política adequada, desconstruindo os grandes partidos e ligando-se aos jovens e aos bolsões de novidade socioeconômica que passaram a pulsar com mais força nas últimas décadas.

Os que vêm patrocinando o projeto Huck, como o deputado Roberto Freire (PPS), por exemplo, têm sido criticados por estarem promovendo a ascensão de um “outsider do centro”, como escreveu Demétrio Magnoli na Folha. São vistos como oportunistas, que usam Huck como veículo de marketing, na falta de melhores opções, um expediente para dar vida a uma coalizão de centro que funcionaria como fator de superação da polarização Lula-Bolsonaro.

A crítica é recorrente: Huck é um globeleza, um cara treinado para cortejar e iludir as massas, que mergulham em seu caldeirão como moscas na sopa. Não seria mais que isso e, portanto, não teria méritos para postular nada, muito menos a Presidência.

Nessa avalanche crítica, não se procura saber o lado do Huck, que pouco fala e não se expõe. O que lhe estaria a passar pela cabeça? Vislumbra a campanha presidencial como uma aventura, uma “oportunidade de negócios”, ou carrega no peito uma sincera preocupação com a situação nacional, dispondo-se a usar a que tem de visibilidade e prestígio televisivo para impulsionar uma renovação política que muitos reputam fundamental?

Não se trata de avaliar o curriculum vitae de Huck, seus diplomas, as escolas que frequentou, a família intelectual, as iniciativas filantrópicas e o engajamento com movimentos cívicos de ultima geração. Tampouco faz sentido perguntar se se trata de uma pessoa de direita, centro ou esquerda.

Currículos desse tipo pesam pouquíssimo na política prática. O que importa mesmo é a intenção, o projeto, o arco de forças. De resto, sabe-se bem que prestígio e visibilidade nem sempre se traduzem em votos.

É aí que entram Roberto Freire e aqueles que, dentro ou fora do PPS, dão oxigênio para Luciano Huck. Tais articuladores representam a política tradicional e de fato estão em busca de alguma opção que tenha brilho e força suficientes para furar essa verdadeira muralha da China que cerca a política nacional, formando um recinto blindado que protege suspeitos, investigados, gente pouco qualificada, mas que conhece o caminho das pedras, um recinto que tritura, enquadra e pasteuriza tudo o que nele respira. Não se trata de uma terceira via entre Lula e Bolsonaro, mas de uma articulação que dê sustentação a um programa mais ousado de governo nacional e promova algum tipo de “limpeza”.

Implodir essa muralha é sonho de muitos brasileiros, cansados de verem sempre os mesmos fazerem sempre as mesmas coisas, indiferentes seja ao clamor da massa pobre e excluída, seja às expectativas políticas, morais e culturais dos setores mais “modernos”.
Vista por esse ângulo, a iniciativa de Roberto Freire merece mais aplausos do que vaias. Impulsionada pela perplexidade geral, ela contém ao menos uma sensibilidade, uma percepção de que é preciso problematizar o coro dos contentes por meio de articulações que se façam de fora para dentro.

O problema é que a iniciativa não responde ao fundamental. Qual seu propósito: uma jogada de marketing para se ganhar tempo? Por que justamente Huck? Seria ele representativo dos novos movimentos cívicos que vocalizam um efetivo desejo de mudança? Não seria mais adequado trabalhar para que esses novos movimentos se reúnam às formas tradicionais, criando condições para uma fusão que seja impregnada por novos projetos e ideias? Um centro democrático encorpado só teria a ganhar com isso.

Erguer pontes que tragam a “nova sociedade” para a política é uma tarefa essencial nos dias atuais. Afinal, o Brasil tornou-se um arquipélago composto por ilhas que vão sendo multiplicadas pela “vida líquida”. Há muitas multidões em ação, à procura de opções, interessada em limpar Brasília dos “maus elementos”, da corrupção, da indiferença social.

Esse Brasil real cansou de polarizações vazias de substância e dedicadas tão somente a disputas de poder. A rigor, ninguém se mostra interessado nas rixas PT x PSDB. Muitos ainda serão levados por elas, que organizaram a política nas últimas décadas e se converteram num vício difícil de largar. Mas a maioria – e seguramente os habitantes dos nichos de vida líquida que crescem sem parar – querem algo mais: querem uma nova proposta, uma nova filosofia política e um novo campo democrático que possa funcionar de fato como um polo generoso, refratário a regressões, aberto a todo, plural e dinâmico.

Apresentar Luciano Huck como alguém com disposição para ajudar na construção dessa ponte, trazendo consigo os novos movimentos cívicos, é bem melhor do que dizer que é preciso achar um meio-termo entre Lula e Bolsonaro ou que o desejado centro político necessita de um nome novo para se materializar.

Huck não é o fator que salvará a articulação democrática de que o país necessita. Pode vir a ser um soldado a mais, emprestando sua visibilidade, suas ideias e sua audiência ao difícil trabalho de construção da fuselagem de um novo campo político que tenha potência suficiente para se converter num efetivo polo de poder democrático. Seria o passo mais nobre e produtivo que daria.

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Marco Aurélio Nogueira é professor de teoria política da Unesp

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