sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Míriam Leitão: Contrarreforma

- O Globo

Concessões para convencer deputados a aprovar a reforma podem elevar o gasto. É preciso definir qual o propósito da reforma da Previdência. Se é para começar a reorganizar as contas públicas, ou se a mudança é apenas para dar ao presidente Michel Temer um argumento para ser chamado de reformista. Se for o primeiro motivo, não se pode fazer concessões exatamente na área fiscal porque isso elevaria gastos, dentro de um projeto que é para reduzir despesas. É contraditório.

Uma negociação política envolve moeda de troca, mas qual moeda é aceitável? É possível fazer mudanças no projeto, mesmo que ele se torne menos efetivo, como acabou acontecendo ontem. Isso significa economizar menos. É ruim, mas aceitável. O que não faz sentido é aumentar gastos. É isso que corre o risco de acontecer.

Dentro das mudanças aceitáveis o governo alterou as aposentadorias rurais, manteve o BPC como está e tirou a DRU da Previdência. Já a idade mínima começará a valer em 2020. Em 2037 chegará nos 62 anos para mulher e 65 anos para homem. Com isso, daqui a 20 anos o Brasil terá a idade mínima praticada hoje em países como Chile, México, Argentina. É ruim, mas isso já é concessão antiga que foi consolidada ontem na apresentação do texto enxuto da reforma.

O que não faz sentido algum é, para aprovar a reforma, fazer concessão a quem deve à Previdência, como, por exemplo, os empresários do setor rural. Essa negociação começou quando o presidente quis se livrar da segunda denúncia do Ministério Público Federal. Temer deu o sinal verde para negociar, postergar e dar desconto na dívida de R$ 17 bilhões das grandes empresas do agronegócio com a Previdência. Um dos beneficiários foi o JBS. Claro que não se podia vetar apenas um grupo, mas não deixa de ser contraditório a empresa receber descontos e refinanciamentos neste momento de denúncias e acordos de leniência. As mudanças feitas no Congresso reduziram a dívida dos ruralistas para R$ 2 bilhões e agora falase que está sendo reaberto o balcão em torno desse passivo.

A “Folha de S. Paulo” de ontem trouxe a informação de que o ajuste fiscal está sendo comprometido para se aprovar a reforma. A negociação incluiria até a revogação do adiamento do reajuste ao funcionalismo. Ou seja, o governo aceitaria “recuar do recuo” do aumento que ele próprio concedeu logo que assumiu. Já havia concordado em tirar as Forças Armadas desse adiamento do reajuste, com o argumento de que os militares estão negociando uma reforma da Previdência só deles e por isso teriam que ter o aumento agora. É desconhecida a relação entre uma coisa e outra, mas foi esse o argumento à época. Agora, o reajuste para os civis também seria mantido para ajudar a aprovar a reforma.

A equipe econômica naturalmente é contra essa decisão porque desveste um santo para cobrir outro. Se o reajuste não for adiado, será necessário encontrar outra forma de arrecadar, ou cortar, perto de R$ 5 bilhões para se manter o déficit do ano que vem em R$ 159 bilhões.

De que vale a reforma se ela é ao mesmo tempo descaracterizada por dentro, pelas mudanças sequenciais na substância, e tem seus efeitos anulados por concessões fiscais em outras áreas? Se for a esse preço, o sentido da reforma passa a ser apenas o de criar a impressão de que foi feita para, assim, ser parte de um marketing político.

O trabalho de quem no governo está sinceramente tentando fazer a reforma da Previdência é muito dificultado pela atitude dos deputados. Eles sequer querem ouvir os argumentos racionais em favor da reforma porque ou estão prisioneiros dos seus guetos ideológicos ou estão apenas contando os possíveis votos da próxima eleição. Neste caso, o exercício do mandato se resume apenas a lutar por outro mandato, e perde a função de representação para o qual o parlamentar foi eleito.

O país está diante de uma situação complexa na Previdência. O déficit aumenta em escalada, estamos no início da onda de mudanças demográficas que a tornarão ainda mais cara e deficitária, o governo é fraco, mas a reforma é necessária. O problema é que para aprovar a reforma — mesmo esse projeto que foi bem reduzido — o Planalto está negociando concessões que podem, no final, tornar inútil todo o esforço de aprovação das mudanças.

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