sábado, 4 de novembro de 2017

Reação de ministra é exemplo da cultura do privilégio – Editorial: O Globo

A afirmação de Luislinda Valois de que é submetida a ‘trabalho escravo’ por receber R$ 33 mil reflete o distanciamento entre o mundo dos servidores e o país real

Ao reclamar por não poder somar a aposentadoria de desembargadora com os proventos de ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois demonstrou a que ponto servidores públicos podem chegar na defesa de privilégios. Impedida de embolsar mensalmente R$ 61,4 mil, devido ao dispositivo constitucional, nem sempre cumprido, que limita os vencimentos do funcionalismo ao salário de ministro do Supremo Tribunal Federal (R$ 33,7 mil), Luislinda, indicada pelo PSDB, se disse vítima de “trabalho escravo”. Uma afirmação descabida.

Revelado pelo “Estado de S.Paulo”, o pleito da desembargadora aposentada baiana é exemplo da cultura do privilégio desenvolvida no funcionalismo público em geral. Por trás da reação da ministra tucana está o entendimento arraigado de que seria muito justo receber R$ 61,4 mil por mês, dos quais a parcela de R$ 30,4 mil refere-se ao benefício da aposentadoria como desembargadora.

A cifra foi reduzida pelo mecanismo do “abate teto”, acionado quando os proventos totais do servidor ultrapassam o limite constitucional. Há variados truques para driblar o abate teto. Mas nem sempre é possível fugir dele. Luislinda Valois não conseguiu.

Em parte do universo do serviço público, mandam-se às favas os desníveis salariais no país. Ou melhor, agravam-nos. Certas carreiras no serviço público ostentam contracheques incompatíveis com a realidade brasileira, ainda mais em meio a uma grave crise fiscal, a mais séria de que se tem registro.

A aposentadoria de R$ 30 mil da desembargadora baiana não é exceção no mundo dos altos funcionários públicos. Entende-se por que os servidores aposentados estão entre os 2% mais ricos da população.

A crise fiscal tem o mérito de expor de maneira pedagógica os privilégios acumulados por castas dentro da máquina pública. Como o Estado entrou na zona de risco da insolvência, e a reforma da Previdência, sempre adiada, tornou-se questão estratégica, têm sido expostos à sociedade, entre outros, os estragos nas contas públicas causados por benesses ao funcionalismo — durante muito tempo, por exemplo, ele recebeu como aposentadoria o último salário, sempre reajustado com os percentuais recebidos pelo servidor da ativa.

Chamam a atenção remunerações no serviço público bastante acima dos valores praticados no mercado de trabalho privado. São distorções históricas cuja conta começou a chegar. Por isso, uma das medidas acenadas pelo governo, no campo do funcionalismo, é reduzir os níveis iniciais de salários de diversas categorias.

Em 2016, segundo o IBGE, a média salarial do funcionalismo foi 63,8% superior à dos empregados no setor privado. Enquanto o aposentado pelo INSS recebeu, no ano passado, um benefício médio de R$ 1.800, um funcionário aposentado do Congresso embolsou R$ 28,5 mil mensais.

A reclamação da ministra Luislinda Valois deriva do entendimento de que essas disparidades são normais. Não são. Esta situação não pode ser aceita com passividade, porque mostra que existe um enorme trabalho a ser feito para desativar os mecanismos de concentração de renda que funcionam dentro do Estado. É ele a principal usina de injustiças sociais.

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