quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Robert Muggah: Declínio devido a globalização não representa fim dos Estados-nação

-Folha de Paulo

A Era dos Estados-Nação está em declínio. Eles são, afinal, retardatários na história.

Até meados do século 19, o mundo era dividido em impérios, cidades-Estados e os recém-nascidos Estados-Nação, que só se consolidaram no século 20. Mas esses, com fronteiras definidas, governos centrais, comunidades imaginadas e autoridade soberana, não são inevitáveis nem eternos, como pode ser visto ao fim da Guerra Fria.

Há menos clareza sobre o que ocorreria sem eles. Conforme Estados-Nação sucumbem ao populismo e ao separatismo, a pergunta que fica é: que ordem (ou desordem) global surgirá em seu lugar?

Esse enfraquecimento de poder é frequentemente atribuído à globalização. Em meados da década de 90, Jean-Marie Guehenno e Kenichi Ohmaepreviram que a disseminação de instituições globais acabaria com a relevância dos Estados-Nação.

Historiadores discordaram, argumentando que as tecnologias da globalização —da navegação a vela à internet— não eram necessariamente destrutivas. Com sua natureza de destruição criativa, a globalização fortaleceria os Estados-Nação.

Ainda assim, o caráter da globalização transformou-se no fim do século 20, tornando-se mais predatório.

A hiperglobalização —que inclui a desregulação financeira acentuada, a aceleração dos fluxos do capital e a desintegração das taxas cambiais fixas— cresceu desenfreada nas décadas de 80 e 90.

Multinacionais pressionavam Estados a reduzir tributos sobre empresas, afrouxar regras e aumentar lucros de capital à custa do trabalho.

Enquanto isso, a disseminação de tecnologias de comunicação aumentavam as expectativas públicas.

Os futuristas que previam o fim do Estado-Nação estão de volta e têm bons motivos para crer nisso.

RUPTURAS
As consequências desconcertantes da hiperglobalização intensificaram-se com a crise financeira mundial de 2008. O jornalista Misha Glenny ressalta: "A recusa dos setores de capital e financeiro em mudar seu modus operandi desencadeou movimentos políticos de ruptura na esquerda e na direita".

A crescente ansiedade em países do Ocidente somou-se à internacionalização de postos de trabalho, à automação, à estagnação salarial, à assustadora desigualdade e, mais recentemente, à migração em massa. Ficou cada vez mais difícil ignorar a envergadura desses desafios.

Ainda assim, elites políticas e econômicas não pareciam ter capacidade ou vontade de apresentar respostas.

Em um mundo de fato globalizado, a importância dos Estados-Nação tem sido analisada por todos os ângulos.

Muitos —sobretudo aqueles recém-empoderados digitalmente— são menos apegados à ideia de Estados-Nação do que seus antecessores.

Ao se voltarem para comunidades conectadas, eles buscam identidades alternativas, sejam inspiradas por fé, etnia, língua, classe ou sexualidade. Falhas na identidade política e o surgimento de "Estados-rede" exercem nova pressão sobre os Estados-Nação e partidos tradicionais.

Se antes a globalização era uma força unificadora, hoje ela fortalece uma localização maior. Pense na Europa, que está sendo separada pelas forças centrífugas de suas identidades fragmentadas: a decisão de uma ligeira maioria dos cidadãos do Reino Unido de sair da União Europeia, em 2016, foi só o início.

Mesmo os apoiadores mais fiéis da União Europeia —França, Alemanha e Holanda— evitaram por pouco uma virada nacionalista nas eleições. Paralelamente, países como República Tcheca, Grécia, Hungria e Polônia se tornam cada vez menos liberais.

Os países oriundos da antiga União Soviética e da ex-Iugoslávia já se fragmentaram, seguindo as linhas tribais, na década de 1990.

Percebendo essa fraqueza, os separatistas marcham na Europa e ao redor do globo.

Os apelos por mais autonomia vão além dos separatistas catalães: há movimentos similares na Bavária, na Córsega, em Flandres, na Lombardia, na Escócia, na Transnístria e em outros lugares.

O cientista político Ryan Griffiths listou 55 movimentos separatistas ativos, cada um com suas próprias táticas, que vão da violência e a resistência civil até as urnas.

Do Curdistão ao Vêneto, separatistas justificam suas demandas como forma de retomar controle e competir em uma economia globalizada.

O separatismo não é o "novo normal", mas um lembrete da persistente vulnerabilidade dos Estados-Nação.

Aqueles que buscam independência e autonomia são encorajados pelo fracasso dos países atuais —especialmente pelas suas elites— em cumprir o contrato social, e isto não é novidade.

No fim do século 19, o francês Ernest Renan alertou para esse risco, descrevendo a nação como um "referendo diário". As nações não puderam ser reduzidas a fronteiras rígidas ou história antiga: elas são a expressão diária de "consentimento". E quando não há capacidade ou vontade de consentir, o projeto nacional fica em xeque.

Ainda assim, os Estados-Nação não derrocaram.

Manifestação pró-Catalunha em Bruxelas
Eles sofreram com a hiperglobalização, mas há esforços para reafirmarem sua autoridade. Uma espécie de nacionalismo reacionário ressurgiu: uma narrativa no estilo "meu país primeiro" vem se espalhando como um câncer pelas Américas e pela Europa, até a Ásia e a África.

Os sintomas são assustadoramente familiares: ascensão de tiranos populistas, fechamento de fronteiras e rejeição ao internacionalismo liberal. Há ecos preocupantes do passado, tais como a liderança autoritária, a crescente xenofobia e a sabotagem institucional que ocorreu na década de 30, que levou a uma guerra e a um massacre sem precedentes.

TRUMP
O avanço do nacionalismo reacionário e de políticas identitárias militantes bate de frente com o que o cientista político David Held descreve como "política de concessões e acomodação" que prevalece desde os anos 50.

O mais alarmante é que o país que foi essencial para a construção de uma arquitetura global liberal —incluindo a ONU, os Acordos de Bretton Woods e a Organização Mundial do Comércio– agora trabalha para destruí-la.

No governo Trump, os EUA estão se retirando de uma abordagem coletiva e retornando a interesses nacionais provincianos, mais ensimesmados do que em qualquer outro momento desde a Segunda Guerra. Trata-se de uma superpotência mercenária, que estimula tiranos das Filipinas à Turquia.

Uma consequência perigosa do retorno aos nacionalismos antagônicos é a redução da cooperação internacional.

Analistas como Ian Bremmer e Nouriel Roubini descrevem o dilema como "mundo G-Zero", onde nenhum país, região ou coalizão (G-20, G-8) pode ou quer assumir a liderança global. Em vez disso, há resistência, até hostilidade, à arquitetura multilateral criada para garantir a segurança e o comércio globais.

Aqueles que saíram perdendo com a hiperglobalização estão revidando, protestando contra imigrantes e pedindo mais protecionismo.

O momento não poderia ser pior. Os acordos globais precisam urgentemente reverter o aquecimento global, frear a ameaça de ataques nucleares preventivos, evitar pandemias e superbactérias, e responder ao deslocamento populacional e às guerras prolongadas que o causam.

À medida que o humor global piora, os Estados-Nação só parecem capazes de tomar meias medidas. Assim, não é de se espantar que as instituições internacionais criadas para enfrentar esses desafios estejam paralisadas. Algumas cidades com poderio econômico têm assumido essa responsabilidade, mas elas ainda não têm poder político para substituir essas instituições na mesa onde decisões globais são tomadas.

Como o mundo muda da desordem pós-guerra para um novo sistema de interdependência administrada é uma das questões mais urgentes da nossa época.

Há vários cenários, todos incertos. A bem da verdade, nem contenção nem retirada são opções, pois poderiam desencadear conflitos regionais ou algo pior. O mais provável seria um projeto econômico internacional liberal menos ambicioso.

No curto prazo, as potências liberais precisarão arrumar as próprias casas enquanto equilibram uma inquietante coexistência com Estados-Nação não liberais.

No longo prazo, um novo mapa de governança global se faz necessário. Um que se responsabilize pela diversidade, pluralidade e mudanças incontestáveis para o equilíbrio global e a distribuição do poder.
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Robert Muggah é o cofundador do Instituto Igarapé, onde é diretor de pesquisa, e um dos diretores do grupo SecDev, dedicada à segurança na internet. Ele recebeu seu doutorado na Universidade de Oxford

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