terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Ricardo Lagos: ‘Autoridades têm de recuperar legitimidade que já tiveram’

Para ex-presidente chileno, abstenção de mais de metade do eleitorado indica sensação da população de que instituições políticas não valem a pena

Janaína Figueiredo / O Globo

-BUENOS AIRES- O resultado da eleição chilena abriu um debate inédito e profundo entre os partidos de centro-esquerda, ainda surpresos pela vitória esmagadora do ex-presidente Sebastián Piñera (2010-2014). Muitos ficaram numa explicação simplista e apontaram, apenas, o sucesso da estratégia dele de apropriar-se de bandeiras alheias, como a defesa da educação gratuita. Outros, como o ex-presidente Ricardo Lagos (20002006), opinam que o buraco é bem mais embaixo e afeta todo o sistema político. “Mais da metade dos eleitores chilenos não se interessou em votar e sente que as instituições políticas não valem a pena”, disse, em entrevista ao GLOBO. Em sua opinião, a aliança de governo Nova Maioria deverá iniciar um “processo de debate, autocrítica e renovação”, mas conseguirá sobreviver. Já o fenômeno da esquerdista Frente Ampla, assegurou o ex-presidente, que aos 79 anos cogitou candidatar-se, “expressa o descontento que existe na sociedade, a busca de algo novo”.

• Que focos de instabilidade o senhor observa atualmente na América Latina?

Mais do que instabilidade, o que vejo na região e também nos países mais desenvolvidos é a perda de confiança das maiorias nas elites governantes. No mundo desenvolvido, todos percebem que seus filhos terão uma vida mais dura do que a que eles tiveram. Em nossa parte do mundo, a situação é exatamente inversa. Aprendemos a derrotar a pobreza, mas essas pessoas que deixaram a pobreza para trás, que vivem de uma renda média, têm aspirações próprias de uma classe média que são muito mais difíceis de satisfazer. Se a isso somamos os casos de corrupção ou, para ser mais amplo, as relações entre o dinheiro e a política, temos uma situação na qual num país elegem (o presidente dos EUA, Donald) Trump, em outro optam pelo Brexit, temos os populismos que emergem na Europa. Em nossa América Latina, essa insatisfação gera as idas e vindas da política.

• Como o cenário mundial impactou na eleição?

Gerou um alto nível de abstenção. Mais da metade dos eleitores não se interessou em votar e sente que as instituições políticas não valem a pena. Isso explica, em boa medida, o que aconteceu no Chile. Provavelmente, o candidato que venceu conseguiu construir um vínculo mais direto com as demandas concretas da população.

• Os chilenos demandam reformas em matéria de educação, saúde...

Claro, porque voltando ao que estava dizendo antes, educação significa que pela primeira vez essas famílias que saíram da pobreza veem como seus filhos podem chegar à universidade. No Chile, de cada dez universitários e alunos de cursos técnicos, sete são a primeira geração de sua família a ter acesso à educação superior. Uma vez que chegam, devem pagar, e aí começam os problemas.

• Chamou a atenção a mudança de discurso de Piñera no segundo turno e sua defesa da reforma educacional de Michelle Bachelet...

Essa foi quase uma exigência de personalidades importantes da direita chilena.

• Com uma participação eleitoral tão baixa, o Chile terá um governo de minorias?

O problema mais sério, na minha opinião, é saber que medidas poderão ser adotadas para que as autoridades recuperem a legitimidade e a confiança que tiveram no passado. Serão necessários consensos. Muitos falam nas dificuldades da coalizão de governo; sim, ele passará por momentos difíceis. Mas a questão profunda é outra e afeta a todos.

• No discurso de derrota, Guillier falou em época de reconstrução, de renovação...

Toda sociedade democrática precisa passar por processos de renovação de lideranças. Me parece normal e conveniente. Essa é a realidade, os partidos da coalizão de governo deverão realizar um processo de reflexão.

• Existe possibilidade de preservação da Nova Maioria?

Haverá debate interno, mas haverá uma expressão das forças de centro-esquerda, não tenho dúvidas. Na política, sempre existem diferenças entre forças. Será uma etapa de reflexão.

• O que o senhor opina da esquerdista Frente Ampla?
Me parece que expressa o descontentamento que existe na sociedade, a busca de algo novo. Agora, eles deverão se projetar com maturidade própria de um grupo político. Me parece muito bom que entrem no Parlamento, seria muito ruim que um grupo tão potente ficasse de fora do sistema político. Assim funciona a democracia. E eles entraram graças à reforma eleitoral que foi feita (por Bachelet).

• A Frente Ampla será a principal oposição a Piñera?

Não tenho tanta certeza. Serão estilos diferentes. A cidadania espera que os setores políticos tenham acordos centrais para recuperar confiança, porque esse é o primeiro desafio.

• O senhor poderia ter sido candidato...

Sobre isso, em abril passado escrevi o seguinte: “Pus todo meu empenho em levar adiante minha mensagem aos chilenos. Mas devo admitir que em meu próprio espaço político, a centro-esquerda, não se produziu uma convergência em relação a este projeto, certamente porque nem todos compartilhamos o mesmo sentido de urgência diante da ameaça de uma dispersão estratégia das forças progressistas e de uma onda de restauração mercantilista e conservadora que pode durar anos”. Foi o que aconteceu.

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