segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Opinião do dia – Sócrates

Não tenho outra ocupação senão a de vos persuadir a todos, tanto velhos como novos, de que cuideis menos do de vossos corpos e de vossos bens do que da perfeição de vossas almas, e a vos dizer que a virtude não provém da riqueza, mas sim que é a virtude que traz a riqueza ou qualquer outra coisa útil aos homens, quer na vida pública quer na vida privada. Se, dizendo isso, eu estou a corromper a juventude, tanto pior; mas, se alguém afirmar que digo outra coisa, mente.


*Sócrates (470 AC-399 AC), foi um dos principais pensadores da Grécia antiga. É considerado fundador do que conhecemos hoje por filosofia ocidental. 'Defesa de Sócrates', p.15 – Os Pensadores, Nova Cultura, 1987

Congresso é reticente sobre fim do foro privilegiado

Parlamentares concordam em debater questão, mas não têm pressa

Cristiane Jungblut, Eduardo Bresciani e Maria Lima | O Globo

-BRASÍLIA- Um grupo de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) veio a público defender o fim do foro privilegiado, mas o Congresso ainda tem muitas reservas sobre o tema. Na última semana, a defesa de mudanças no instituto do foro feita por ministros do STF já deixou em pé de guerra lideranças no Senado, como o presidente do PMDB, Romero Jucá (RR), que retrucou dizendo que, se for acabar com o foro, tem que ser para todo mundo, inclusive para o Ministério Público.

A maioria concorda que é preciso manter foro privilegiado para casos relacionados ao exercício do cargo. Um assassinato cometido por um político, por exemplo, não teria motivo para tramitar num foro especial. Mas os mesmos que concordam que é necessário mudar alegam que não dá para acabar com o benefício para todo mundo. É preciso encontrar um meio termo para não deixar vulneráveis os chefes de poderes.

‘Supressão do foro não é uma panaceia’, diz Gilmar

Para ministro, defesa do fim de prerrogativa é ato ‘irresponsável’ porque nos Estados ‘as pessoas não são investigadas’

Rafael Moraes Moura e Breno Pires | O Estado de S.Paulo

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), disse em entrevista ao Estado que é uma “irresponsabilidade” apresentar a limitação do foro privilegiado como solução dos problemas nacionais. Uma eventual supressão do foro, segundo ele, deveria atingir todos – inclusive os integrantes do Judiciário.

Gilmar reconheceu que a imagem do STF “não ficou lustrosa” no ano passado e garantiu que sua relação próxima com o presidente Michel Temer não vai comprometer o julgamento da ação que pode levar à cassação do mandato do peemedebista pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Leia os principais trechos da entrevista.

Lava Jato deixa potenciais candidatos em 2018 em compasso de espera

Igor Gielow | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Geraldo Alckmin ou um outro político tradicional. Marina Silva, ladeada ou não por Joaquim Barbosa. Lula ou Ciro Gomes. João Doria ou alguma surpresa ainda incógnita, à espera do momento certo para ser revelada, à moda dos profetas ocultos das religiões orientais.

Neste fevereiro de 2017, estas são as apostas para a sucessão do presidente Michel Temer (PMDB) entre líderes partidários, analistas políticos e de mercado ouvidos pela Folha.

É um exercício que deságua no paradoxo socrático do "Só sei que nada sei", devido ao imponderável representado na Operação Lava Jato. Os consultados, em sua maioria, não quiseram se identificar, para falar livremente.

Dois deles resumiram publicamente a divisão nas especulações para 2018, descontando um cenário em que a crise política se agrava, derruba Temer e leva a um pleito indireto.

"Acho que a surpresa virá. E há espaço aberto para aventuras, pois o eleitorado vai pedir alguém de fora do sistema político", diz o economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, que assessorou Marina em 2014, mas que aqui opina por si próprio.

À frente do Centro de Liderança Pública, o cientista político Luiz Felipe D'Avila afirma que "o próximo presidente sairá da estrutura partidária tradicional".

Candidatura de Lula é a dúvida no campo da centro-esquerda

Igor Gielow | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Apesar dos anos de desgaste, o cenário atual entre observadores prevê alguém da centro-esquerda com chances de ir ao segundo turno em 2018.

Os olhos convergem para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, único nome do PT com densidade eleitoral, exceto que o partido aposte em algum derrotado de 2016, como o ex-prefeito paulistano Fernando Haddad.

A questão é menos se Lula será impedido de concorrer por uma condenação em duas instâncias na Lava Jato, uma possibilidade, e mais se ele irá encarar uma campanha na qual teria de enfrentar um rosário de questionamentos, do desastre econômico à Lava Jato.

Nome conservador alternativo e Marina disputam terceira via

Igor Gielow | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - A equação para 2018 tem alguns candidatos a terceira via. No campo à direita, o vácuo de lideranças viáveis deu espaço ao crescimento do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que vem cravando por volta de 10% em intenções de voto.

Há, contudo, uma certa unanimidade em apontá-lo como sintoma temporário, fadado a seus limites.

"Não me surpreende o desempenho do Bolsonaro. Desde 2013, há um crescimento da simpatia à direita no eleitorado", afirma o diretor-geral do Datafolha, Mauro Paulino.

Naquele ano, uma pesquisa já apontava que 48% do eleitorado tinha simpatias conservadoras. "Foi uma decorrência da decepção com os governos do PT, e prevejo uma votação inédita nesse campo", diz. Hoje, Bolsonaro se sobressai, mas nomes menos heterodoxos podem ocupar esse espaço.

Centro-direita vive paradoxo com apoio potencial e suspeitas

Igor Gielow | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - No chamado campo conservador, de centro-direita ou qualquer outra denominação imprecisa, o drama é enorme para 2018.

É um paradoxo, com o PT destroçado após o impeachment de Dilma Rousseff e a devastação decorrente do mensalão e do petrolão.

Mas os principais nomes deste campo estão também sob a ameaça da mesma Lava Jato. E, mantendo a tradição, estão brigando entre si.

Propinas rastreadas em 3 anos somam R$ 4 bi Propinas de R$ 4 bi

Em três anos de investigação, Lava-Jato desvendou valores pagos a políticos e servidores

Cleide Carvalho e Gustavo Schmitt | O Globo

-SÃO PAULO- Propina distribuída no posto de gasolina, repassada na paróquia e até escondida na calcinha. Às vésperas de completar três anos no próximo dia 17, a Operação Lava-Jato rastreou pelo menos R$ 4,1 bilhões pagos a políticos, partidos e funcionários públicos — aponta levantamento do GLOBO. Desse total, R$ 577,8 milhões foram comprovados em ações já julgadas em primeira instância na Justiça Federal de Paraná e Rio. Outro R$ 1,7 bilhão faz parte de processos e investigações em andamento, sem sigilo judicial. Para fechar a conta, há mais R$ 1,9 bilhão reconhecido pela Odebrecht, que admitiu ser este o valor pago por subornos apenas no Brasil.

As investigações mostram que o esquema de corrupção abasteceu políticos e partidos de variados matizes e ideologias. Entre os já condenados, há nomes como José Dirceu e André Vargas, do PT; o ex-senador Gim Argello, à época do PTB; Pedro Corrêa, do PP, e Luiz Argôlo, que foi do PP e do SD. Em todos esses casos, a Lava-Jato conseguiu verificar de onde saiu o dinheiro e como foi recebido pelos beneficiários.

Com prisão decretada, aliado de Bolsonaro foge

Com prisão decretada, ex-deputado foge de cerco policial no ES

Capitão Assumção e outros três militares são acusados de incitar motim em Vitória; secretário estadual fala em ‘terrorismo digital’

Adriana Fernandes e Leonêncio Nossa | O Estado de S.Paulo

A Justiça Militar do Espírito Santo decretou neste sábado, dia 25, a pedido do Ministério Público Estadual, a prisão de quatro policiais por envolvimento no motim dos policiais militares do Estado. Eles são acusados de incitar o movimento e de aliciamento de outros policiais com a divulgação de áudios e vídeos em redes sociais.

A polícia tentou prender os quatro em suas casas, mas não os encontrou. Um deles, o ex-deputado federal e militar da reserva conhecido como capitão Assumção, foi encontrado mais tarde no 4º Batalhão da PM, em Vila Velha. Os policiais da Corregedoria da PM chegaram a detê-lo, mas ele escapou.

Carnaval – Aécio Neves

- Folha de S. Paulo

É uma festa bonita de ver. De Norte ao Sul do país, nas ruas e praças das grandes capitais ou no interior, os brasileiros se entregam ao carnaval com uma paixão contagiante. Não importa se vestido como um rei para desfilar na avenida ou coberto de roupas velhas e muita purpurina em um bloco no fundo do quintal, o folião brasileiro é a imagem da alegria que encanta turistas do mundo todo. A maior e mais democrática festa popular do país, no entanto, vai muito além da celebração passageira que se esvai na quarta-feira de cinzas. Falar de Carnaval é falar de inclusão.

Nos últimos anos, em especial, cidades que eram muito esvaziadas pela população local nesse período do ano, como Belo Horizonte e São Paulo, estão construindo uma realidade totalmente diversa, com o carnaval ganhando um protagonismo inédito. São centenas de blocos e milhões de pessoas nas ruas. O notável nesse fenômeno é que ele é basicamente movido pela organização popular, especialmente dos jovens. São eles que estão moldando esse novo experimento urbano e, ouso dizer, também político.

Quem sobrará... - Ricardo Noblat

- O Globo

“Viva Lula. Viva o PT. Viva a corrupção.” João Doria, prefeito de São Paulo, em resposta aos que o hostilizaram no carnaval.

A história contada pelo primeiro amigo, o advogado José Yunes, parceiro do presidente Michel Temer há mais de 40 anos, tem começo, meio e fim, mas não resiste a meia dúzia de perguntas inocentes. Tudo indica que foi concebida para livrá-lo de maiores encrencas com a Lava-Jato, blindar Temer e oferecer uma saída honrosa para Eliseu Padilha, ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República.

POR ORA, PADILHA deixou o cargo para tratar da saúde ameaçada por um tumor na próstata. Imagina voltar ao governo no próximo dia 6. Se o fizer não será sozinho. Com ele, a Lava-Jato entrará de vez no Palácio do Planalto e se instalará a poucos metros do gabinete de Temer. Haverá situação mais incômoda para um presidente carente de popularidade e com uma agenda repleta de graves problemas?

Doutrina da orgia – Dora Kramer

- Veja

Adeptos do vicio pregam virtude

A pretexto de manifestar repúdio à hipocrisia, determinados personagens costumam render homenagens à franqueza. Neste tipo de comportamento se expõe com nitidez quanto à transgressão travestida de retidão reside arraigada na raiz da transgressão.

Dias atrás o chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, pôs-se a ensinar fisiologismo a diretores da Caixa Econômica Federal e o líder do governo, senador Romero Jucá, tentou ampliar a sorreifa o alcance do foro especial de justiça, para depois advoga-lo na forma de orgia generalizada. Fizeram-no nas barbas do Palácio do Planalto, sob o silêncio indulgente da grei brasiliense – a residente nos intramuros do poder – cuja sensibilidade para o que se passa fora de sua vizinhança se encontra enfraquecida por obra dos próprios excessos.

Os criadores e a criatura – Vinicius Mota

- Folha de S. Paulo

Pelos critérios de apoio legislativo e coerência partidária entre Congresso e Executivo, o governo Temer está entre os mais fortes da Nova República. O contraste com sua popularidade rasteira e as constantes baixas no primeiro escalão não poderia ser maior.

Talvez a resposta da equação esteja no dispositivo do impeachment, espécie de eleição indireta que substitui um governo politicamente falido por outro que na saída amealha dois terços do Congresso.

A deterioração econômica e a desconfiança dos cidadãos na política, sem as quais um presidente eleito dificilmente cai, levam mais tempo para dissipar-se. A gestão Itamar Franco, uma das mais reformistas da história recente, viveu seu primeiro ano entre a frustração e a insignificância.

União instável - Cida Damasco

- O Estado de S. Paulo

Lava Jato põe em risco convivência entre alívio econômico e tensão política

Estava tudo pronto para o governo Temer deslanchar uma agenda econômica vigorosa nos próximos dias. A crise política, no entanto, não dá descanso e ameaça interferir não só na continuidade da discreta melhora na atividade econômica como nas mudanças estruturais prometidas para a travessia de 2017/2018. Leia-se na negociação das dívidas dos Estados à beira da falência e principalmente na discussão das reformas previdenciária e trabalhista, que estão no topo da lista de prioridades da administração Temer.

O Planalto prepara-se para voltar da trégua de carnaval sob forte pressão da Lava Jato. Tudo que se temia e se tentava adiar acabou ganhando corpo na semana passada com a grave denúncia envolvendo o poderoso chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, e o empresário José Yunes, amigo muito próximo do presidente, que confessou ter sido “mula” de dinheiro para o ministro na campanha eleitoral de 2014. Padilha providenciou um afastamento do governo e Temer procurou se desvencilhar de qualquer ligação com esse episódio, mas foi forçado a admitir, em nota oficial, que recebeu colaboração “formal” da Odebrecht. O episódio trouxe a Lava Jato para mais perto ainda de Temer, antes mesmo da liberação total das delações dos executivos da Odebrecht e de outras empreiteiras.

Carnaval, retrato da alma brasileira - Marcus Pestana

- O Tempo (MG)

Nada talvez traduza mais a alma do povo brasileiro do que o carnaval. A alegria atávica, a diversidade cultural, o sincretismo religioso invadindo a festa pagã, a criatividade sem limites, a convivência plural de raças, idades e classes sociais, explodindo nas ruas, praças e avenidas.

Creio não haver país mais musical do que o Brasil em todo o mundo. Nossa multiplicidade de ritmos e estilos é inigualável. Qual é o país na face da Terra que produziu uma constelação de escolas presentes no samba, no choro, no frevo, no maracatu, na bossa nova, no axé, na MPB, na congada, no sertanejo?

O carnaval expõe a potencialidade enorme que temos nas mãos. Um povo criativo e alegre que, mesmo diante de uma das maiores crises de sua história, solta a voz celebrando sua vida, suas tradições, sua memória.

Os (dez)mandos do populismo - Gustavo Krause

- Blog do Noblat

Há quem diga que populismo não é uma doutrina, mas uma síndrome. Carece de elaboração orgânica e sistemática; as definições se ressentem de ambiguidade conceitual; a divisão arbitrária ocorre entre povo e “não-povo” (Ludovico Incisa, Dicionário de Política, Bobbio, Matteucci, Pasquino. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1986, pags. 980/2).

Trata-se de um fenômeno recorrente na história e objeto de estudo permanente das ciências sociais. Atualmente, desperta especial atenção por conta da mudança de endereço e de figurino. Com habitual maestria, o economista Sergio Buarque constata: “O nacionalismo e o populismo se deslocaram dos antigos países do terceiro mundo para as nações ricas e os antigos impérios coloniais”. E ao se alojar nos EUA, xenófobo e anacrônico, “faz tremer a ordem mundial” (Revista Será?, 11//11/16, revistasera.info).

Por sua vez, o cientista político mexicano Enrique Krauze (coincidência), no ensaio os “Os Dez Mandamentos do Populismo” (aqui renomeado “Os Dez(mandos) do Populismo”), fornece os seguintes traços do fenômeno:

Retrato do Brasil – Editorial | O Estado de S. Paulo

Pesquisa recente da Ipsos Brasil revela informações desconcertantes no que se refere à maneira como os brasileiros percebem a imagem dos dirigentes do País. A avaliação de 20 personalidades demonstra até que ponto o brasileiro está justa e positivamente impressionado com o combate à corrupção simbolizado pela Operação Lava Jato.

As três figuras mais bem avaliadas são todas do Judiciário: o juiz Sergio Moro, com 65% de aprovação, seguido pelo ex-ministro Joaquim Barbosa – que há cinco anos presidiu o julgamento do mensalão e pouco depois se aposentou –, com 48%, e a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, com 33%. Em seguida surgem os dois primeiros políticos: Lula da Silva, com 31%, e a ex-ministra Marina Silva, fundadora da Rede, com 28%.

Não é invenção brasileira – Editorial | O Globo

Poder cumprir pena a partir da segunda instância não contraria a presunção de inocência
Já é parte da História o primeiro embate jurídico logo no início do julgamento do mensalão, em 2012, no Supremo Tribunal Federal (STF). Aberto os trabalhos, sob a presidência do ministro Ayres Britto, a defesa de acusados de participar daquele esquema de desvio de dinheiro público para montar uma bancada de apoio parlamentar a Lula pediu que vários réus, sem foro privilegiado, tivessem os processos remetidos para a primeira instância.

O ministro-relator, Joaquim Barbosa, fizera seu voto em bloco, considerando os quase 40 denunciados pela Procuradoria-Geral da República, por entender que eles tinham atuado como uma “organização criminosa”. Como havia parlamentares envolvidos, o processo estava no Supremo. E devido à característica da operação que fora montada pela cúpula do PT — José Dirceu, José Genoíno, Delúbio Soares etc. — achava o MP federal, com a concordância de Barbosa, que todos deveriam ser julgados juntos.

Babel tributária – Editorial | Folha de S. Paulo

Parece pouco promissor o reinício do debate em torno de outra reforma fundamental para o país, a tributária. Uma sucessão de propostas e declarações divergentes sugere, ao menos por ora, mais tumulto do que vitalidade.

Abrigado no Palácio do Planalto, o fórum de representantes da sociedade conhecido como Conselhão encaminhou à Casa Civil documento que defende a unificação de todos os impostos e contribuições incidentes sobre o consumo.

Ideia muito parecida é gestada em comissão da Câmara dos Deputados que apresentará em breve um projeto de reforma. Entretanto, o relator do texto, Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), acrescentou uma tanto de exotismo à fórmula ao acenar com a volta, em bases permanentes, da CPMF –o "imposto do cheque" cobrado até 2007.

Evocação do Recife – Manuel Bandeira

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
— Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.