terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Affonso Celso Pastore*: A regra de ouro e a trindade impossível

- O Estado de S.Paulo

Em vez de acentuar o ajuste fiscal, o governo o afrouxa e libera mais gastos para tentar aprovar a reforma da Previdência

Quando o Plano Real optou pela âncora cambial, mas queria também o peso de uma âncora monetária, foi obrigado a elevar os controles aos ingressos de capitais e o recolhimento compulsório sobre os depósitos bancários, evitando o que Mundell chamou de “trindade impossível” – a impossibilidade de ter simultaneamente câmbio fixo; liberdade de fluxos de capitais; e controle monetário. Questionado sobre qual âncora lançaria para sustentar a estabilidade de preços, Gustavo Franco deu a resposta de Vasco Moscoso de Aragão ao marinheiro que se preocupava com a aproximação da tempestade: lance todas as âncoras.

Para truncar o crescimento explosivo da dívida pública o governo tinha de controlar o crescimento dos gastos, e deu um sinal forte com a aprovação do congelamento dos gastos primários em termos reais. Mas pontas ficaram soltas, a mais importante das quais é que mais de 40% dos gastos primários vêm do déficit da Previdência. Como os gastos com a Previdência estão fora do congelamento, e a dinâmica demográfica vem reduzindo a proporção de jovens, que contribuem, e aumentando a de idosos, que recebem os benefícios, a menos que se aprove uma reforma da Previdência, o teto de gastos não se sustenta.

Para reforçar o compromisso com o ajuste o governo criou a regra do teto dos déficits primários, que com o congelamento dos gastos em termos reais e a queda da taxa real de juros determinaria a trajetória da relação dívida/PIB. Avaliado pela cotação do CDS brasileiro, a reação dos mercados foi favorável, mas apesar dessas duas medidas o governo ainda continuará gerando déficits primários nos próximos anos, e mesmo diante da forte queda da taxa real de juros a dívida pública continuará crescendo.

É nesse ponto que surge uma nova forma da trindade impossível. No Artigo 167 da Constituição – a regra de ouro – é vedado que o governo se endivide para pagar despesas correntes. Ocorre que para cumprir o teto de gastos e atingir a meta do déficit primário o governo já cortou “até o talo” os investimentos, o que diante dos inexoráveis déficits primários nos próximos anos o obriga a elevar a dívida pública para pagar os gastos de custeio, descumprindo a regra de ouro.

A origem do problema remonta à combinação de um déficit primário enorme no início do ajuste combinado com um gradualismo excessivo. Naquele momento, tanto quanto agora, não havia nenhuma esperança de crescimento acelerado das receitas, o que significa que por vários anos à frente está contratada uma elevação da dívida pública. Em 2017 fomos salvo pela devolução de R$ 50 bilhões do BNDES, e em 2018 uma nova devolução dos recursos do BNDES pode permitir o cumprimento da regra de ouro. Mas estes são apenas paliativos.

Não é preciso nenhuma teoria econômica, mas apenas uma aritmética elementar, para concluir que mesmo cumprindo o congelamento dos gastos e a meta dos déficits primários será impossível cumprir a regra de ouro se for mantido o excessivo gradualismo do ajuste do resultado primário. Em vez de pensar em mudar a regra impressa na Constituição, gerando mais desconfiança, é preciso aumentar a intensidade do ajuste fiscal, que tem seus efeitos sobre a atividade econômica atenuados pela boa execução da política monetária, e que com maior austeridade fiscal garantirá taxas reais de juros baixas por mais tempo. É preciso aprofundar – em vez de aliviar – a reforma da Previdência; é preciso conter outros gastos correntes; é preciso elevar a eficácia da arrecadação, eliminando as vantagens do Simples e as várias desonerações em vez de premiar com uma sucessão de Refis os empresários inadimplentes. Em vez de acentuar o ajuste, contudo, o governo o afrouxa, liberando mais gastos e acentuando a perda de receitas para tentar aprovar a reforma da Previdência. Esta e outras incoerências agravam a situação no lugar de resolvê-la.
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* Ex-presidente do Banco Central

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