domingo, 11 de fevereiro de 2018

Sérgio Besserman Vianna: Saudades da tolerância

- O Globo

Havia mortos e feridos nas discussões, mas, no sábado seguinte, todos juntos e amigos

Todos os sábados se reuniam na casa de meus pais amigos politizados. Muitos eram grandes intelectuais; outros, dirigentes do Partido Comunista na clandestinidade, médicos, psicanalistas. Passavam a noite conversando e, às vezes, debatendo acaloradamente o mundo, a resistência à ditadura militar e todos os assuntos imagináveis. Ninguém tinha vergonha de perder uma discussão, argumentos eram lançados como flechas. Havia mortos e feridos, mas, no sábado seguinte, todos juntos e amigos. Eu, criança, ouvia e assistia com toda a atenção. Jovem, já participava.

Meu pai, Luiz Vianna, um excelente cirurgião e generoso anfitrião, chamava o grupo de Milênio porque, somadas as idades, passaria de mil anos. As discussões eram rigorosas, vigorosas e regadas a um bom scotch. Argumento ruim era ridicularizado, ânimos se exaltavam, mas profundidade era requisito mínimo.

Lembro-me de um programa “Milênio”, da GloboNews, em que o filho do Fernando Sabino contava de conversas semelhantes entre os quatro amigos, Fernando, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino (que também frequentava o papo de sábado lá em casa) e Paulo Mendes Campos. Ele contou deliciosa história em que o Hélio e seu pai discutiam quase aos berros um assunto, e o Sabino foi ao banheiro.

Quando voltou, atacou: “Quer saber? Se você acha realmente isso, seu argumento é idiota. O que você deveria dizer é isso, isso e aquilo”. Ao que o Hélio contraatacou: “Ah é? E você também, se pensa mesmo assim, ao invés dessas besteiras, deveria argumentar que isso, isso e aquilo outro”. E seguiram quentes na discussão com posições invertidas.

Vi isso acontecer com Luiz Mario Gazzaneo, grande na história do jornalismo brasileiro, presentes Armênio Guedes, Giocondo Dias, Alberto Passos Guimarães, importantes intelectuais e dirigentes do Partido Comunista Brasileiro. Num sábado, formou-se uma maioria pró-soviética contra os eurocomunistas (na época, o pequeno punhado da turma de esquerda que também era democrata, liderada por Armênio, outro grande jornalista). Gazzaneo dirigiu todas as suas baterias contra a “ditadura do proletariado”.

Sábado seguinte formou-se uma maioria muito crítica ao “socialismo real”. Gazzaneo não gostou da corrente, inverteu de posição e dirigiu poderosas baterias argumentativas contra os que queriam entregar toda a História ao mercado.

Outro sábado, minha mãe, Helena Besserman, psicanalista e ativista política entusiasmada desde que nasceu, disse que, se ganhasse na Loteria Esportiva (a única, então), daria metade para o PCB. Meu avô, Froim Besserman, caçula de nove irmãos na Polônia do pré-guerra, todos mortos no Holocausto, deu um pulo e disse: “Tá maluca, Helena?”. Minha mãe: “Qual o problema? Dava o dinheiro, sim! Lênin não deu a vida?”. Meu avô: “A vida, Helena, é outra coisa”.

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Sérgio Besserman Vianna é presidente do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro

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