segunda-feira, 26 de março de 2018

Cacá Diegues: Quem matou Marielle?

- O Globo (25/3/2018)

O assassinato da vereadora e de Anderson não pode ter sido obra de fanáticos aflitos, incapazes de suportar a diferença entre discursos políticos

Afinal de contas, o que desejavam os assassinos de Marielle e Anderson? Podemos muito bem não descobrir nunca quem eram eles; mas vai ser difícil viver sem saber o que queriam os criminosos com aquela barbaridade. Por que fizeram isso?

Vi, na televisão, o braço direito do assassino descansando sobre o encosto do banco traseiro do carro prateado que perseguia o das vítimas. A imagem não era lá essas coisas, mas dava para perceber o relógio excessivo apertado em seu pulso direito e, se não me engano, o anel com pedra alta em um de seus dedos daquela mesma mão. Um dos dedos que haveria de apertar, dali a pouco, o gatilho da arma que mataria Marielle e Anderson.

O assassinato dos dois não pode ter sido obra de fanáticos aflitos, incapazes de suportar a diferença entre discursos políticos. O gesto tresloucado de rapazes ansiosos para pôr em ordem o mundo conforme o que pensam dele. Se fosse assim, a morte de Marielle e Anderson não teria sido tão simples e discreta, tão sem som, sem manifestos e gritos de qualquer espécie. Não foram tiros descabidos, selvagens e desmedidos que os mataram. Mas apenas o que o matador precisava, muitos, oportunos e certeiros. Tiros profissionais.

Nenhum político, nem qualquer soldado; nenhum policial, nem qualquer traficante; nenhum civil, nem qualquer militar; ninguém, sem preparo específico, seria capaz de executar tal operação. Só mesmo um bom profissional poderia deixar seu braço direito descansar por horas no encosto do banco traseiro do automóvel, esperar friamente pela tardia saída da vítima de seu compromisso noturno, segui-la em dois carros prateados para que um a bloqueasse na altura precisa de uma escuridão sem câmera aberta, e ele pudesse, através da janela de vidro do carro dela, atirar quatro vezes precisas na cabeça de Marielle.

Em 1954, eu era um adolescente começando a me interessar por política, quando ocorreu o atentado da Rua Tonelero, contra o então deputado Carlos Lacerda. Com a ajuda de meu colega de ginasial César Augusto Coelho Guimarães, até hoje um guia a quem peço sempre socorro, acompanhei a crise que acabou, poucas semanas depois, com o suicídio de Getúlio Vargas. Ali, os paus-mandados eram desastrados pistoleiros da Baixada Fluminense que foram logo identificados. O que destampou a tampa da crise, chegando ao suicídio de um presidente da República, foi a busca pelos mandantes. A rigor, até hoje não se sabe direito quem encomendou o atentado, botaram a culpa num negão da segurança palaciana e ficou por isso mesmo.

A morte de Marielle provocou outro tipo de crise, porque não se tratava de eliminar um adversário político, mas de fazer sangrar uma ideia que a vítima cultivava. Uma ideia tão perigosa que seus inimigos fizeram questão de nos avisar, de arma na mão, que não a admitiam. A escolha de Marielle, como mártir neste sacrifício exemplar, não se deu por causa de seu poder de modesta vereadora; as balas que a atingiram visavam a ferir a mais contemporânea forma de amor que ela incorporava — os direitos humanos. Marielle precisava ser destruída, como exemplo e aviso, pelos que não acreditam no ser humano e no seu direito de rir e sonhar, no seu direito de lutar pela felicidade e de ser feliz. Marielle foi morta por quem desejava matar o amor.

Não sou capaz de dizer como tudo isso vai acabar. Assim como não esperávamos o seu começo, talvez não sejamos capazes de adivinhar o futuro dessa crise. Mas se queremos mesmo um mundo de irmãos e de paz, tenhamos a coragem de usar a morte de Marielle para nos aproximar e não nos dividir, para nos unir e isolar dessa união aqueles que não acreditam no ser humano, os que querem o mesmo que os mandantes desse crime, um mundo como lugar do pecado, um mundo de restrições e domínio de uns sobre os outros.

O sacrifício de Marielle nos deixa a obrigação de estarmos todos juntos na construção democrática deste país que vagueia por aí, sem rumo e sem história, entregue aos mandantes da morte de Marielle, sejam eles quem for. Vamos garantir as eleições deste ano e a posse de quem quer que seja legitimamente eleito. E, depois das eleições, a nossa colaboração ou a nossa ardente oposição ao programa vencedor, com a ideia de que fazemos isso em nome do progresso e do amor, sem tentar adivinhações sobre o que vai pela cabeça do outro lado.

Gostaria de reproduzir aqui um pedacinho de lindo artigo de Flávia Oliveira, a propósito do assassinato de Marielle:

“Você pode apoiar o livre mercado, fazer campanha pelas privatizações, professar fé nas parcerias público-privadas, investir em ações, ouro e gado. E defender os direitos humanos. Esses princípios não são monopólio da esquerda. Tampouco são incompatíveis com a direita. Têm a ver com mulheres e homens, manos e minas, pobres e ricos, pretos, brancos e indígenas, prostitutas e moralistas, recatadas e malandros, crianças, jovens e idosos, gays, lésbicas, trans e héteros. Direitos humanos são para todos”.

É disso que estamos falando.

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Cacá Diegues é cineasta

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