sábado, 3 de março de 2018

Zuenir Ventura: Desarmar os espíritos

- O Globo

Há preconceito na reserva com que alguns encaram uma medida indispensável como a intervenção na segurança, mas essa resistência é fruto de dolorosas sequelas

Certas atitudes e declarações infelizes lançaram dúvidas a propósito da atual intervenção na segurança do Rio e estão dividindo opiniões. Há os que se posicionam contra a iniciativa temendo o risco de uma recaída militar, e os que são a favor, argumentando que o Brasil mudou e, com ele, as Forças Armadas, que hoje não são mais o que eram há cerca de meio século.

Os primeiros têm desagradáveis lembranças quando veem, por exemplo, o general Antonio Hamilton Mourão chamando seu colega de farda, o interventor Braga Netto, de “cachorro acuado” porque está fazendo uma “intervenção meia-sola”, sem coragem de afastar o governador Pezão e assumir o poder político e o poder militar. Antes, ao passar para a reserva, ele chegou a ameaçar: “Ou as instituições solucionam o problema político pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos em todos os ilícitos, ou então teremos que impor isso”. Sem falar no elogio de um dos mais notórios torturadores daquela época.

Nada indica que o general Braga Netto seja capaz de idênticos arroubos. Mas é também inegável que ele não consegue esconder sua desconfiança em relação à imprensa. Sua declaração ao ser nomeado interventor foi para atribuir à “mídia” muito da violência que assusta os moradores do Rio. E, mais recentemente, na sua primeira entrevista coletiva, exigiu que as perguntas fossem entregues antecipadamente, não se sabe se para estudar as respostas ou se para... não quero usar o temível verbo. De qualquer maneira, é uma prática em desuso desde a redemocratização do país. Pode-se alegar com razão que há muito de preconceito nessa reserva com que alguns encaram uma medida indispensável como a intervenção na segurança do Rio, mas essa resistência é fruto também de dolorosas sequelas.

Por isso, foram da maior importância as manifestações de superação e grandeza de dois dos mais importantes legados de 1968, os então líderes que seguiam caminhos opostos na luta contra a ditadura militar: Vladimir Palmeira, que propunha a solução política: “Só o povo organizado derruba a ditadura”. E Fernando Gabeira, que acreditava no confronto: “Só o povo armado derruba a ditadura”.

Em artigos aqui no GLOBO, Palmeira afirmou que a intervenção é um “choque positivo”, e Gabeira advertiu contra a presença hoje de “fantasmas” dos anos de chumbo. São duas sensatas contribuições para que esse tão desejado processo de pacificação, além de tirar as armas dos bandidos, desarme também os espíritos.

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