domingo, 1 de abril de 2018

Samuel Pessôa: Prisão em segunda instância

- Folha de S. Paulo

Definir cumprimento da pena apenas após o trânsito em julgado é perder luta contra a corrupção

No direito penal americano, o réu é preso na primeira instância. No julgamento, o juiz instrui os jurados de que o réu deve ser considerado culpado mesmo se eles não estiverem 100% convictos da culpa. Basta que a dúvida seja mais fraca do que uma dúvida razoável.

Ou seja, o direito americano considera explicitamente no seu ordenamento a possibilidade do erro jurídico. É possível condenar uma pessoa inocente. Mesmo que os jurados não estejam certos da culpa, se o conjunto probatório for muito consistente —isto é, se, em razão do conjunto probatório, a probabilidade de a pessoa ser inocente for extremamente baixa, segundo o juízo dos jurados—, o sistema jurídico americano instrui os jurados a considerar a pessoa culpada.

Qualquer pessoa que tenha feito um curso introdutório de estatística sabe que existe um teorema que estabelece que, se um sistema jurídico for construído de sorte a ser impossível condenar um inocente, também será impossível condenar um culpado. Qualquer sistema jurídico estabelece, a partir de toda processualística, uma ponderação entre um erro, condenar o inocente, e outro erro, inocentar um culpado.

Se for um processo civil, isto é, entre cidadãos e que não pode redundar em pena de privação de liberdade, mas somente em compensações financeiras, o requerimento de certeza é ainda menor. Decide-se a responsabilidade civil de um cidadão para com outro de acordo com a preponderância da evidência. Quem contar a melhor história ganha o caso.

É por esse motivo que, no direito americano, é possível uma pessoa ser condenada no processo civil e absolvida no processo penal, como foi o caso do jogador de futebol americano O. J. Simpson.

Quanto maior for o número de recursos possíveis, e quanto maior for o número de instâncias recursais em seguida à Justiça de primeiro grau, menor será a probabilidade de condenar um inocente. Consequentemente maior será a probabilidade de inocentar um culpado.

Se o STF mudar o entendimento e estabelecer que o início do cumprimento da pena será apenas após se esgotarem todos os recursos possíveis na última instância, será impossível condenar um culpado em crime de colarinho-branco, que são os crimes que em geral não deixam prova material. Nesses casos a regra será a prescrição, em razão das inúmeras oportunidades de protelação.

De fato, mesmo num caso em que houve prova material claríssima, o exemplo escandaloso do assassinato da jornalista Sandra Gomide pelo jornalista Pimenta Neves, que foi réu confesso, levaram-se 11 anos para o início da pena, após o STF se pronunciar. Não me pergunte o porquê de o processo de um crime planejado, por motivo torpe e sem que o assassino tenha dado o direito de defesa à vítima, terminar no STF.

No código de Processo Penal há excrescências como “Embargo de Declaração nos Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Extraordinário no Recurso Extraordinário no Agravo Regimental no Agravo Regimental no Agravo nº 13874499”. Demorei uns 15 minutos para copiar da página 189 do livro “A Luta contra a Corrupção”, de Deltan Dallagnol.

Assim, o entendimento do STF de que o início do cumprimento da pena ocorra apenas após o trânsito em julgado é equivalente a dizer que réus em crime de colarinho-branco com bons advogados nunca serão condenados mesmo que culpados. Perderemos a luta contra a corrupção.
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Samuel Pessôa é formado em física e doutor em economia. É pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

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