segunda-feira, 30 de julho de 2018

Marco Aurélio Nogueira: A reflexão política de Luiz Werneck Vianna

Autores como Luiz Werneck Vianna dispensam apresentações. Suas intervenções são sempre esclarecedoras, especialmente quando se debruçam sobre os fatos da conjuntura. Valendo-se de uma ciência social rigorosa e de uma visão abrangente da vida brasileira, ele trata os fatos sempre a partir da compreensão crítica dos processos e ritmos da estrutura, da história. Por esse caminho, edificou uma completa teoria de nossa formação como Estado nacional e como comunidade política.

Em Diálogos Gramscianos sobre o Brasil Atual, que acaba de ser lançado pela Verbena Editora e pela FAP, podemos encontrar o sociólogo em plena forma. É um livro composto por entrevistas, que se estendem por um longo período (2007-2018) e vão além de meras análises de conjuntura. Nelas, o esforço recorrente é para captar a política em pleno voo e decifrar o enigma brasileiro.

Encontramos, nesses diálogos com seus entrevistadores, a marca da visão que Werneck elaborou sobre o Brasil, na qual ressoa forte o conceito gramsciano de revolução passiva: o desenvolvimento capitalista brasileiro seguiu caminhos não-lineares, nos quais a modernização teve sua marcha ralentada e condicionada por resistências e movimentos de conservação empreendidos pelas elites dominantes. Houve mudança, e ela foi expressiva, mas também muita conservação. Os fatos foram se impondo quase que com autonomia em relação aos sujeitos. Mas os atores não desapareceram, nem ficaram submetidos o tempo. Nos momentos de maior avanço, conseguiram de algum modo “dirigir” aquilo (e aqueles) que bloqueavam o progresso (a democratização, o desenvolvimento, a ascensão social). O processo se fez mediante reformas e avanços moleculares.

Para Werneck, o Brasil é um país sufocado pela centralidade do Estado, que modelou a modernização de modo a prolongar a subalternização das classes populares e a dificultar a marcha do próprio moderno. Tratou-se de uma “estatalização” que não foi organizada tão-somente pelas elites dominantes, mas também pelos atores que buscaram se apresentar como expressão da esquerda. A tutela do povo combinou-se ou com o autoritarismo dos tempos da ditadura, ou com políticas de clientela e assistencialismo em tempos de democracia.

Werneck procura acompanhar os desdobramentos mais recentes desse processo, olhando em detalhe a atuação do PT no governo, antes de tudo marcada pelo abandono da ideia de organizar e autonomizar as classes populares e pela concentração de esforços no prolongamento do poder conquistado, para o que entregou-se parte importante do governo a forças políticas tradicionais. Os movimentos sociais foram assim submetidos ao Estado, tornando-se dele dependentes, inclusive em termos de recursos. Fechou-se assim um círculo a mais no processo de “estatalização”.

Ao analisar a “era Dilma” (2011-2015), Werneck ressalta a fracassada tentativa de patrocinar um desenvolvimentismo sem foco emancipatório e destinado basicamente a servir de plataforma para a reprodução de um bloco de forças no poder. A consequência disso não foi apenas o impulsionamento de uma grave crise econômica e fiscal, como também a perda da base parlamentar, que levou ao impeachment, e uma crise política de vastas proporções, com a qual ainda temos de lidar. Decorreram daí o empobrecimento e o desprestígio da política democrática, num quadro em que a aceleração de uma modernização “hipermoderna” desorganizou a sociedade e disseminou uma gigantesca hostilidade à política por parte da opinião pública e dos eleitores.

Natural, portanto, que o sociólogo fosse buscar apoio em Antonio Gramsci, autor de que ele é um dos maiores intérpretes entre nós. O marxismo gramsciano lhe serve para tematizar a questão da hegemonia, da orientação intelectual e moral, espinho sempre espetado na garganta de nossas esquerdas, e para pensar em chave teórica sofisticada os dilemas da modernização nacional. Gramsci não é tratado aqui como um pensador fechado em si ou autossuficiente — muito menos como um depósito de conceitos a serem “aplicados” — mas como um intelectual que reflete sobre as dores do desenvolvimento capitalista e, a partir disso, construiu uma teoria política de valor universal. Um intelectual cujo vigor se mostra na medida mesma em que é articulado com outras referências teóricas.

Werneck Vianna explora a sinuosidade do processo político-social brasileiro, vendo nele não somente as marcas da reprodução do “atraso”, da vida tradicional, mas também os sinais eloquentes de um mundo novo que exibe suas agendas, seu desconforto e seus estilos de atuação. Ou seja, convida-nos a refletir sobre aquilo que amarra o país e anuncia seu futuro.

Encontramos no livro, por exemplo, uma reflexão rica e sugestiva sobre o combate à corrupção, tratado, no caso, sobretudo a partir da ação do Ministério Público e do Judiciário, da Lava Jato e operações semelhantes. Werneck é crítico contundente da corrupção, sabe os males que ela causa à sociedade e à política. Mas não aceita a centralidade adquirida pelo tema, que deslocou para a margem todas as demais questões. Além disso, vê com reservas o estilo de atuação dos juízes e procuradores, fortemente marcada por aquilo que se chama de “ativismo judicial”. Por seus “excessos”, a atuação disseminou uma condenação moralista da política, que impregnou diversos setores da opinião pública. Como Werneck escreveu várias vezes ao longo dos anos, procuradores e juízes agem como se fossem os únicos reformadores republicanos: “tenentes de toga”, que, diferentemente dos antigos tenentes dos anos 1920-1930, não têm uma plataforma programática abrangente. Pode haver algum exagero retórico na apreciação, mas é inegável que Werneck chama atenção para uma dimensão particularmente relevante do combate à corrupção.

Lendo as entrevistas, ficamos mais atentos para o nosso problema atual, que em boa medida deriva do fato de que os sinais do novo não conseguiram ser compreendidos e processados pelo mundo político, estatal, governamental. Enquanto a sociedade envereda pela trilha da “hipermodernidade”, a política se refugia nos bastidores do Poder Executivo. Abriu-se assim uma fenda entre sociedade e Estado, que passou a servir de abrigo para a reprodução tanto do fisiologismo político quanto de um imperfeito presidencialismo de coalizão.

Como escreveu o cientista político Rubem Barboza Filho na contracapa do livro, “nesta coletânea o leitor irá se deparar com a reflexão, em ato, de um de nossos maiores intelectuais. Longe da impotência reflexiva que esteriliza as nossas conhecidas divisões, Luiz Werneck Vianna reafirma, com uma verve que associa a visão de longo prazo e a face das conjunturas, duas de suas paixões: o Brasil e a democracia. Paixões que alimentam a lucidez profética de quem não aceita para o país outro futuro senão uma vida democrática cada vez mais densa e produtiva”.

É uma descrição perfeita do que se encontra no livro. Dele sai um convite precioso para que pensemos politicamente na política e nos esforcemos para ir além de suas limitações correntes e abraçarmos suas possibilidades.

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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp

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