sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Cristian Klein: Haddad, sob o dedo de Lula e a sombra de Dilma

- Valor Econômico

Lulismo, fora do governo, é ainda mais personalista

Trânsito livre, sinal verde, o fluxo, de repente, é interrompido por batedores da escolta da guarda municipal que atravessam o cruzamento, na esquina do Balança Mas Não Cai. O motorista de táxi esbraveja contra o prefeito cujo carro oficial força a passagem. É o pior que já viu. Não é preciso circular muito pela cidade para se atestar o abandono e o asfalto carioca cheio de buracos. Mas o dono do veículo roda muito, o que lhe dá algum conhecimento de causa. "Nunca tinha rasgado um pneu em toda a minha vida, só com esse prefeito!". Na véspera da abertura da campanha oficial para presidente da República, a direção da prosa - quase um monólogo - arranca do desnivelado plano local para o nacional, numa guinada.

O taxista se queixa do destino de Lula. "Teve debate", começa, antes de reclamar da ausência do petista no primeiro encontro entre presidenciáveis. "É uma mordaça o que colocaram nele", continua. Preso em Curitiba, o candidato do PT foi convidado, avisara o apresentador da Band na quinta-feira, "mas está impedido pela Justiça de participar". O mesmo se dará no segundo debate, nesta sexta-feira. Na mesma manhã em que o condutor dirigia, inconformado, o juiz Sérgio Moro publicava despacho para adiar os depoimentos de Lula nos processos a que responde na vara federal da capital paranaense. A justificativa de Moro foi a de evitar a "exploração eleitoral dos interrogatórios".

Moro é escolado no estrago que as falas e os discursos de Lula podem causar. Um estrago que ressoa dentro do automóvel amarelo, enquanto se avança pela Avenida Presidente Vargas. O Judiciário que prende Lula e barra candidatura é o mesmo que se concede aumento de 16,38% em tempos de desemprego e crise econômica, aponta. O motorista vê, de um lado, o presidente em cujo governo a economia e o consumo lhe deram os melhores momentos na praça. De outro, enxerga o poder dos magistrados que julgam, mas não oferecem - porque não são - soluções políticas. "Eu sei como foi, a minha família sabe, em comparação com o que está agora", lamenta.

O taxista afirma já ter visto muitos presidentes, Garrastazu Médici, Geisel, Tancredo - "O neto é esse..." e, antes do impropério, lhe escapa o nome de Aécio Neves cujos eleitores em 2014 maldiz tanto quanto os de Crivella em 2016. Dos quase 60 anos de idade, conta que na maior parte deles ouviu que o problema do país era a enorme dívida externa. "Ninguém mais fala dela. Foi o burro, analfabeto, nordestino que pagou".

Para o eleitor frustrado, Lula "é o paraíba, quatro dedos" que tornou o Brasil respeitado mundo afora, elogiado por líderes mundiais. "E o que somos agora?", pergunta. Diante de tanto lulismo, o interlocutor tem curiosidade de saber ou apenas confirmar se, sem o ex-presidente nas urnas, o cidadão votará no candidato do líder petista. "Eu não. Voto em ninguém", freia o motorista. Nem mesmo se Lula indicar e pedir voto? "Ele indicou a Dilma, e olha no que deu", conclui.

Palavra de taxista não é pesquisa estatística. Mas pode dar pista do que ronda pela cabeça do eleitor. Mostra como não será fácil a missão de Lula de transferir votos para Fernando Haddad, no instante provável em que o Tribunal Superior Eleitoral impugnar a candidatura do ex-presidente. No que o voto tem de retrospectivo, a lembrança do governo Lula, do período de crescimento, conta a favor, mas não é tudo.

O contraste entre heranças "bendita" e "maldita", que balizou as últimas eleições entre PT e PSDB, não dará mais o tom do conflito. Há muitas heranças em jogo, dos anos Lula e FHC, aos impopulares mandatos de Dilma e Temer. Uma coisa era Lula transferir votos antes do impeachment e do legado de Dilma - ainda que se questione o modo como a petista caiu. Um discurso baseado no golpe é menos crível quando o PT se alia, nos Estados, a quem o apeou do poder dois anos atrás. Outra coisa é Lula transferir votos depois da experiência administrativa de Dilma.

A ex-presidente é uma sombra para Haddad. O lulismo, fora do governo, ganha um contorno ainda mais personalista, dependente do líder máximo. É de se duvidar da capacidade que Haddad terá de captar esses 30% de eleitores que hoje votariam em Lula. Jogam contra o ex-prefeito de São Paulo o pouco tempo de campanha para ser reconhecido como o candidato de Lula, a impossibilidade de fazer atos e vídeos de campanha estando Lula na prisão, e a ausência nos primeiros debates e sabatinas. Não menos importante, a propaganda fará a identificação de Haddad com Lula, mas os adversários o associarão a Dilma. Do mesmo modo que o PT associará Alckmin a Temer.

É pelo apego ao poder que Lula ainda não abriu mão da candidatura a tempo de realizar o velho milagre da transubstanciação da política brasileira: a do criador que se reinventa na criatura. Não há uma estratégia a favor de Haddad em se retardar a substituição de um pelo outro, embora impactos positivos não estejam descartados. O ex-prefeito pode se beneficiar do efeito surpresa, numa corrida presidencial em que o eleitor busca o novo, mas com segurança. É o que resta aos petistas.

A notícia relativamente boa para Haddad vem de pesquisa divulgada nesta quinta-feira pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) em Pernambuco. No Estado nordestino em que o PT teve o pior desempenho no primeiro turno de 2014 - foi o único em que Dilma perdeu na região, por 44% dos votos contra 48% de Marina Silva, então no PSB - o ex-prefeito já lidera com 27% das intenções de voto. Ali, a transferência de votos, mesmo sem campanha, atinge metade das preferências por Lula, que registra 55%. Sem o ex-presidente, Marina (15%) e Bolsonaro (14%) estão em segundo lugar, num empate técnico, seguidos por Ciro (9%) e Alckmin (5%).

Há quatro anos, nos outros oito Estados do reduto eleitoral petista, Dilma obteve entre 50% e 70% dos votos. Se Haddad, no geral, atingir o piso da ex-presidente, terá cerca de 13% dos votos nacionais, apenas com o desempenho no Nordeste. Se amealhar metade disso nos 73% de eleitorado restante pelo país, chegaria a 20%, patamar que o deixa competitivo para alcançar o segundo turno. Na teoria, não é difícil.

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