segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Eduardo Oinegue: Marina e o parlamento Jekyll e Hyde

- O Globo

Candidata da Rede à Presidência critica centrão, mas não governaria sem os votos dos deputados dessas legendas

Imagine um lugar que reunisse centenas de pessoas como o médico Henry Jekyll, figura ilustre que convivia com dupla personalidade. Ora alguém de hábitos relativamente normais, ora o monstruoso Edward Hyde. Pela lógica da candidata Marina Silva, esse lugar passará a existir. Será o novo Congresso Nacional, que tomará posse em janeiro do ano que vem.

A presidenciável tem dito que, se eleita, construirá com o Legislativo uma relação baseada em princípios. E, baseada em princípios, transformará o Brasil com seus projetos de lei, medidas provisórias e emendas constitucionais. Mas, se o candidato Geraldo Alckmin for eleito, alerta Marina, as relações éticas talvez deem lugar ao fisiologismo. Isso porque, ao contrário dela, o tucano montou uma ampla coligação com partidos dados ao toma lá dá cá.

E aí entra o Congresso com dupla personalidade. O parlamento que sairá das urnas em outubro não depende da eleição presidencial. Terá a mesma composição, não importa quem venha a ocupar o Palácio do Planalto. Por que parlamentares que exigem cargos e favores de um presidente apoiariam outro com base em princípios? Ou pelo inverso: por que parlamentares dispostos a agir por princípios cobrariam cargos e favores de outro? Só pode ser a dupla personalidade.

Na noite da última quinta-feira, durante o debate dos presidenciáveis do Grupo Bandeirantes, Marina repetiu seus ataques à aliança de Alckmin com o centrão. Não exagerou ao descrever as práticas nocivas adotadas por vários dos integrantes das oito legendas que se juntaram ao PSDB. Só que Marina fala como se o Brasil possuísse dois congressos, um onde reina o centrão, e outro onde ele não manda nada. Marina pode repetir seu raciocínio quantas vezes quiser. A recorrência não mudará a aritmética da maioria parlamentar.

Fiquemos na Câmara dos Deputados, só para facilitar. Para aprovar uma emenda constitucional —e quem prega mudanças precisa aprovar algumas emendas constitucionais —, são necessários 308 de 513 votos possíveis. Os partidos que apoiam Alckmin reúnem atualmente 275 deputados. O MDB, que apoia o candidato do governo, tem 51. Como são todos fisiológicos e Marina não negociará cargos e favores, restariam 187 deputados dispostos a uma relação ética. Onde iria buscar os 121 votos que faltam para emplacar suas emendas? A eleição até pode mudar o tamanho das bancadas, mas a composição da atual legislatura dá a dimensão do desafio que aguarda o novo governo.

Marina teria dificuldades para comandar até mesmo uma votação de projeto de lei, pois a sessão só começa com 257 deputados federais em plenário. A matemática não vai mudar. A legislação não prevê concessões só porque os seis deputados de sua base cabem hoje numa van. E aí, de duas, uma. Marina pode ganhar, manter distância sanitária do centrão e fingir que governa. Ou chamar o centrão para um acordo, provavelmente nos mesmos termos empregados por Alckmin. Claro, sempre pode torcer para que o novo Congresso seja mesmo formado por tipo Jekylle Hyde.

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