segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Fernando Limongi: Da vida na democracia

- Valor Econômico

A quem interessa maior competição eleitoral?

O PT jogou pesado. O acordo selado com o PSB asfixiou Ciro Gomes. No curto prazo, foi um tento e tanto para a sobrevivência da estratégia traçada por Lula. O PT mexeu as peças e matou no nascedouro quem o poderia suceder. Resta saber se a operação vai render os frutos eleitorais esperados. Tudo depende de Lula transferir votos, algo que não pode se dar como seguro.

O PSB, talvez porque escaldado pelo passo em falso dado em 2014, resolveu não arriscar. Em lugar de usar a associação com Ciro para decolar nacionalmente, preferiu preservar o governo de Pernambuco. Jogou para garantir o certo. Na escolha, sacrificou em praça pública seu candidato ao governo de Minas Gerais, Marcio Lacerda.

O PT, para tirar o espaço em que Ciro poderia crescer, barrou as pretensões de Marilia Arraes, tida e havida como uma liderança emergente, capaz de ameaçar a reeleição de Paulo Câmara ao governo de Pernambuco.

Não se ganham eleições sem sacrifícios e acordos. O crucial para as lideranças é diminuir a incerteza, limitando a competição. Inimizades e conflitos são facilmente esquecidos quando a cooperação facilita a vitória nas urnas.

Sem maiores problemas, os 'golpistas' Eunício Oliveira e Ciro Nogueira foram abrigados nas coligações dos governadores petistas. Todos ganham quando a competição é reduzida e os mandatos são renovados com maior segurança.

Esta foi a essência da estratégia que consagrou Lula: fazer acordos para impedir a entrada de competidores taludos em seu campo. Assim se elegem 'postes'. Ciro, pela segunda vez, foi vítima dessa lógica. Em 2010, o PSB, liderado por Eduardo Campos, fechou-lhe as portas, garantindo que a candidatura Dilma Rousseff não sofresse concorrência. Dessa feita, Ciro bem que tentou cavar seu espaço. Quando o PT sinalizou que ocuparia a esquerda, Ciro moveu-se na direção oposta, buscando aliança com o famigerado 'centrão'. Sem sucesso, foi forçado a dar meia volta e procurar o PSB. Acabou espremido, sem espaço e com pouco tempo de rádio e TV para fincar seu pé na disputa.

A despeito do sucesso da operação, o PT corre riscos inegáveis. A candidatura presidencial do partido está preservada, mas não há garantias de que os votos virão na hora agá. As lideranças petistas parecem acreditar que existe algo chamado 'lulismo', isto é, que Lula tem controle sobre o voto de seus eleitores potenciais.

As pesquisas eleitorais captam a intenção de voto nas circunstâncias presentes, que, nada garante, vai se realizar nas urnas. Mesmo quando a pergunta se refere a uma possibilidade -- se o entrevistado votaria em um candidato indicado por Lula -, a resposta pouco diz sobre o comportamento efetivo no dia da eleição.

A mais recente pesquisa do Ideia Big Data é suficiente para dar conta das dificuldades que o PT enfrentará. Se incluído no questionário, Lula lidera as intenções de voto com 29% das preferências. Bolsonaro fica em segundo com 17%, seguido de Marina com 11% e Ciro com 7%. Quando Lula é substituído pela opção "Alguém do PT, indicado e apoiado por Lula", esse candidato potencial só obtém 9% das intenções de voto. A perda é substancial. Marina, neste cenário, pula para 11%, isto é, tem desempenho superior ao 'genérico' indicado por Lula.

No caso das rodadas em que os substitutos de Lula são nomeados (Fernando Haddad e Jaques Wagner foram testados), os resultados colhidos pelo PT chegam a ser dramáticos. Nenhum dos dois consegue passar dos 3%. Bolsonaro e Ciro pouco flutuam com a variação do rol de candidatos, enquanto Marina ganha alguns pontos, chegando a 14% no cenário que lhe foi mais favorável.

Assessores das campanhas, com certeza, devem ter acesso a informações mais detalhadas e aprofundadas. Entretanto, não se deve desconsiderar a possibilidade de que o PT e, mesmo, seus adversários estejam exagerando o poder eleitoral de Lula.

As hesitações do PT para definir o candidato a vice são suficientes para indicar que a estratégia é mais complicada do que parece. A disputa pelos eleitores que declaram que votariam em Lula continua aberta. O PT não é o herdeiro natural desse legado. Terá que batalhar para conquistá-lo.

Evolução
Vamos para a oitava eleição presidencial consecutiva. Essa semana, o TSE publicou as estatísticas básicas sobre a composição do eleitorado. A comparação com os dados análogos para 1989 fornece um bom retrato das modificações pelas quais o país passou desde o retorno à democracia.

Dos quase 70 milhões habilitados a votar 29 anos atrás, mais de 40% não haviam frequentado a escola e, no máximo, diziam que sabiam ler e escrever. O eleitorado mais do que dobrou desde que Collor chegou à presidência, mas a proporção dos que não frequentaram escolas caiu para 15%. Entre os eleitores com 20 anos ou menos de idade, o número dos que não frequentaram a escola é praticamente zero, não chega a 1% do total da faixa etária.

O país passou por uma transformação radical desde o retorno à democracia. Ainda está longe de ser uma maravilha (por exemplo, apenas 33% desses jovens concluiu o secundário), mas inegavelmente melhor do que 30 anos atrás.

Justificativa
Jair Bolsonaro afirmou que os negros escravizavam uns aos outros e que os portugueses sequer puseram os pés na África. Mais do que uma ignorância histórica, a afirmação é uma tentativa de explicar a realidade social presente, consistente com a recusa do deputado de apoiar qualquer política de ação afirmativa.

Os negros seriam os responsáveis por seu próprio infortúnio e, por isso, ocupariam as posições mais baixas na sociedade, segundo todo e qualquer indicador social. Os portugueses e os brancos não poderiam levar a culpa por algo que, em última análise, teria sido produto da ação dos próprios negros. Para Bolsonaro, quem está por baixo mereceria a posição em que se encontra. Para usar sua terminologia, não passariam de uns 'vagabundos'.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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