segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Fernando Limongi: O usual suspeito

- Valor Econômico

Diz-se que o atual sistema é a origem de todos os males

Na segunda-feira, em debate público promovido pelo Cebrap e pela "Folha de S.Paulo", o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, não poupou críticas ao sistema politico brasileiro. A avaliação foi ácida e impiedosa: "Não há salvação com esse modelo político." A afirmação peremptória foi seguida pela identificação do culpado: o sistema proporcional de lista aberta, um "desastre completo", responsável pelos altos custos da campanha e pela baixa representatividade do Congresso Nacional.

Com base nesse diagnóstico, o ministro defendeu a adoção do sistema distrital misto. Para Barroso, o modelo praticado pelos alemães teria o condão de propiciar um processo de regeneração da política brasileira, contribuindo decisivamente para baratear as campanhas eleitorais e conferir mais representatividade ao sistema.

No debate, para espanto do ministro e de boa parte da plateia, defendi o sistema atual, notando que ele tem numerosas qualidades e que a maior parte das distorções que lhe são imputadas não são de sua responsabilidade, caso dos elevados custos das campanhas eleitorais no Brasil.

Não faltam defensores do modelo alemão. A "Folha de S. Paulo", em editorial publicado na sexta-feira, após criticar os "exageros" dos debatedores, defendeu a necessidade de reformas ambiciosas, destacando que há muito milita entre os defensores do voto distrital misto, sem explicar as razões deste apoio.

A Lava-Jato e outros escândalos da história recente do país comprovam que o sistema político brasileiro pede reformas. O ministro Barroso está coberto de razões quando o critica e rejeita a tolerância para com a corrupção. Neste ponto não há debate ou controvérsia. Esses problemas precisam ser atacados.

Cabe, no entanto, discutir se estas mazelas derivam da representação proporcional de lista aberta e, em caso positivo, se a adoção do modelo alemão traria os benefícios esperados.

Apresentado como combinação do modelo proporcional e do majoritário, capaz de preservar as qualidades de ambos, o sistema misto conquistou corações e mentes. Defendê-lo virou prova de sofisticação intelectual. Entretanto, mesmo que o sistema seja dotado de todas as qualidades alardeadas pelos seus defensores - aproximar representantes dos representados e baratear as campanhas para deputados -, seus efeitos regeneradores e civilizadores seriam, no máximo, marginais. A razão é simples: eleições para deputado ocupam posição subordinada no sistema eleitoral brasileiro.

Não é demais lembrar que nem todas as eleições brasileiras são reguladas pelo princípio proporcional. Presidente, governadores, senadores e prefeitos são eleitos pelo sistema majoritário. Assim, o diagnóstico do ministro e da "Folha de S.Paulo", implicitamente, coloca as eleições legislativas no centro do sistema politico, ao mesmo tempo em que exime de culpa as eleições para o Executivo.

No argumento do ministro, "corrupção sistêmica" se deveria ao fato de o presidente ser um "refém" dos interesses escusos dos parlamentares. Estes, por sua vez, agiriam sob a pressão do alto investimento feito para obter seus cargos. Assim, conclui o ministro, na raiz de todos os males estariam os altos custos das campanhas para chegar à Câmara dos Deputados.

Esta visão coloca o sistema politico brasileiro de ponta cabeça, invertendo sua lógica. As eleições mais importantes são as majoritárias, e não as proporcionais. As eleições presidenciais e as para os governos estaduais são as que mais importam para os eleitores, para os políticos e, consequentemente, para os interesses organizados. São elas que ditam a lógica do sistema. Assim, mexer na forma como as eleições para deputados são organizadas terá um efeito marginal sobre o funcionamento do sistema partidário.

Consulta às prestações de contas dos candidatos revela que os gastos de campanha cresceram fortemente nas três últimas eleições. Este crescimento, contudo, concentrou-se nas eleições majoritárias, as senatoriais incluídas. Nesse período, os gastos declarados dos deputados permaneceram relativamente estáveis e, além disso, apresentaram alta concentração em torno de alguns poucos deputados, em geral os apaniguados dos líderes partidários. Fatos como estes são olimpicamente ignorados pelas propostas de reforma politica.

Vale notar que o crescimento registrado indica que o montante de recursos investidos nas eleições não depende da legislação, pois esta não mudou enquanto os gastos cresciam. A demanda por recursos cresceu à medida que a polarização partidária entre PT e PSDB se espraiou do plano nacional ao estadual. Os grandes financiadores, interessantemente, pagavam as contas dos dois lados.

Neste ponto, vale consultar a delação de Claudio Melo Filho, ex-diretor de relações institucionais da Odebrecht: "Após esse acontecimento [CPI dos Anões do Orçamento], a Odebrecht mudou radicalmente sua forma de atuação estratégica quanto ao tema. Nesse momento, os recursos para as obras passaram a ser aprovados e liberados diretamente pelo Poder Executivo, por meio da criação de dotação orçamentária específica, que não mais sofria influência individual de parlamentares. Este acompanhamento e pressão política para as liberações de recursos são feitos diretamente pelos DC's [diretores comerciais] e DS's [diretores superintendentes] das respectivas obras junto ao Poder Executivo."

Creditar à representação proporcional de lista aberta a origem de todos os males é lugar comum no debate político brasileiro. Mal comparando, é o mesmo que mandar prender os usuais suspeitos. Como na esfera policial, tal prática não faz mais do que confirmar preconceitos e estereótipos.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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