quarta-feira, 22 de agosto de 2018

FHC contesta Lula em artigo ao FT: ‘Ficção prejudicial ao Brasil’

Por Carolina Freitas | Valor Econômico

SÃO PAULO - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) confrontou a narrativa do PT sobre a situação jurídica e política de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O partido faz uma ofensiva internacional pela candidatura de Lula ao Planalto, em que coloca o petista como vítima de perseguição. Em artigo publicado nesta terça-feira no jornal “Financial Times”, do Reino Unido, o tucano diz que o discurso do PT “é uma ficção prejudicial” ao Brasil. “É uma grave distorção da realidade dizer que há uma campanha direcionada no Brasil para perseguir indivíduos específicos. Meu país merece mais respeito”, escreve FHC.

“Lula tem todo o direito de defender seu ponto de vista no país e no exterior no que se refere aos procedimentos legais que pesam sobre ele”, escreve. “A maneira pela qual Lula da Silva escolheu se defender perante o mundo, no entanto, precisa ser contestada.” Para Fernando Henrique, Lula “retrata o Brasil como uma democracia em ruínas”, onde “o Estado de direito cedeu lugar a medidas arbitrárias”. “Isso não é verdade”, sustenta Fernando Henrique.

Segundo o tucano, o caso de Lula não é isolado. “No Brasil, há políticos de todos os partidos na prisão, e do próprio PSDB.” O tucano Eduardo Azeredo, ex-governador de Minas Gerais, foi preso em maio depois de ter sido condenado a 20 anos por peculato e lavagem de dinheiro no mensalão mineiro.

No artigo, Fernando Henrique contesta também o argumento de que o impeachment de Dilma Rousseff (PT) foi um golpe e que o Brasil estivesse “sem rumo” quando Lula assumiu - sucedendo ao próprio FHC, em 2003.

Abaixo, a íntegra do artigo traduzido pelo Valor*:

Visão de Lula da Silva do Brasil é uma ficção prejudicial
Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil de 1995 a 2002

Meu sucessor como presidente se retrata falsamente como vítima de uma conspiração da “elite”

Luiz Inácio Lula da Silva retrata o Brasil como uma democracia em ruínas, na qual o Estado de direito cedeu lugar a medidas arbitrárias para minar a ele a seu partido.
Isso não é verdade.

O ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva tem todo o direito de defender seu ponto de vista no país e no exterior no que se refere aos procedimentos legais que pesam sobre ele.

São procedimentos que o levaram à prisão, depois que um tribunal de recursos federal em janeiro manteve a sua condenação por corrupção e lavagem de dinheiro. A maneira pela qual Lula da Silva escolheu se defender perante o mundo, no entanto, precisa ser contestada.

Em artigo recente, ele apresentou uma versão da história brasileira recente que não tem relação com a realidade. Isso seria um problema apenas para historiadores, se ele não fosse o influente líder político que ele é. Luiz Inácio Lula da Silva retrata o Brasil como uma democracia em ruínas, na qual o Estado de direito cedeu lugar a medidas arbitrárias para minar a ele a seu partido.

Isso não é verdade. Tampouco é verdade, como Lula da Silva sustenta, que o Brasil estava sem rumo antes de ele assumir a Presidência em 2003. Basta lembrar da estabilização bem-sucedida da economia depois de anos de hiperinflação, que começou com o Plano Real lançado pelo ex-presidente Itamar Franco e continuou durante meu governo. Também foi um período marcado pelo estabelecimento dos programas de bem-estar social que Lula da Silva iria expandir subsequentemente.

Sua versão das últimas décadas da história brasileira é peculiar, uma versão na qual algumas vezes ele aparece como o salvador do povo e algumas vezes como a vítima de uma conspiração da “elite”.

Por si só, isso se presta, inadvertidamente, a deslegitimar o esforço coletivo que é a fundação da democracia brasileira. O impeachment da presidente Dilma Rousseff e sua remoção do cargo em 2016 não foram, ao contrário do que afirma Lula da Silva, um golpe de Estado. Foram resultado, entre outras coisas, da violação, pelo governo dela, da lei de responsabilidade fiscal do Brasil no período que antecedeu as eleições de 2014. O processo de impeachment seguiu todas as propriedades constitucionais, sob supervisão do Supremo Tribunal brasileiro, cuja maioria dos ministros foi escolhida por Lula da Silva e Rousseff.

Minha crítica não é motivada por antagonismo pessoal. Lula da Silva e eu lutamos juntos contra o regime autoritário que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Quando, subsequentemente, concorremos um contra o outro em eleições democráticas, mantive um relacionamento construtivo com ele. Sinto muito que o ex-presidente enfrente acusações adicionais por corrupção e lavagem de dinheiro. Mas o fato é que os procedimentos legais nos quais ele está envolvido seguiram o devido processo e foram levados adiante em conformidade com a Constituição e o Estado de direito.

O caso de Lula não é isolado. No Brasil, há políticos de todos os partidos na prisão, sendo que muitas das condenações foram corroboradas por um tribunal de recursos. Elas incluem membros de meu próprio partido, o PSDB.

O precedente para a prisão depois que a condenação é mantida por um tribunal de recursos federal tem origem em um julgamento do supremo tribunal que antecede em muito a condenação de Lula da Silva. Pessoas condenadas começam a cumprir sua sentença sem que isso afete seu direito a entrar com recursos em cortes superiores.

Além disso, a inelegibilidade de Lula da Silva para concorrer a presidente nas próximas eleições é consequência de uma iniciativa popular que recebeu mais de 1 milhão de assinaturas e depois foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente em 2010. A chamada lei da Ficha Limpa, resultado de uma campanha da sociedade civil contra a corrupção, proíbe qualquer pessoa condenada na instância dos tribunais de recursos a concorrer a cargos. A iniciativa popular que resultou na lei foi uma resposta direta ao escândalo do mensalão, uma fraude de troca de votos por dinheiro revelada em 2005.

O desmantelamento desse esquema de corrupção não impediu que outro, ainda maior, fosse perpetrado em algumas das maiores estatais, mais notavelmente a Petrobras.

A investigação desse escândalo, conhecida como “Lava-Jato”, revelou um esquema para desviar bilhões de dólares para o Partido dos Trabalhadores, de Lula da Silva. O Brasil está passando por um processo doloroso, mas necessário, de remoralização de sua vida pública e as ações da Procuradoria-Geral da República e do Poder Judiciário são parte disso.

Nem sempre me sinto confortável com a duração das sentenças impostas ou com a expansão da detenção “preventiva” antes dos julgamentos, nas quais o acusado é preso antes de seu primeiro julgamento em uma corte de instância mais baixa. É, entretanto, uma grave distorção da realidade dizer que há uma campanha direcionada no Brasil para perseguir indivíduos específicos. Meu país merece mais respeito.

* Tradução de Sabino Ahumada

Nenhum comentário: