quarta-feira, 5 de setembro de 2018

A prioridade dos gastos e a tragédia do Museu Nacional: Editorial | Valor Econômico

Duzentos anos de história do Brasil desapareceram em 6 horas, tempo que os bombeiros levaram para apagar o incêndio que consumiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, na noite de domingo. A tragédia segue os padrões recorrentes de inúmeras outras em que os poderes públicos (termo já impróprio) estiveram envolvidos. O que ficou soterrado nos escombros do museu não pode ser recuperado e o acervo perdido tem um valor incalculável. Não se conhecem, com absoluta certeza, as causas do incêndio. Quanto ao que o tornava possível, a lista é longa e comum a outros desastres. Em um país em que a vida parece ter pouco valor e o tratamento dispensado pelo Estado aos cidadãos comuns é abaixo da crítica, o acervo histórico e cultural só poderia ser visto como um luxo dispendioso - e tratado como tal.

A tragédia do incêndio do Museu Nacional surpreende também por não ter ocorrido antes - há mais de 10 anos se mencionou oficialmente o risco. A responsabilidade pelos danos é do governo federal, não de uma gestão, mas das que se sucederam por décadas. O descaso pelo passado, que não é privilégio do poder público, ganhou tons gritantes à medida que a crise fiscal do Estado se aproxima da fase terminal. Quem enxerga apenas um pedaço do filme, o final lamentável de um acervo precioso, acusa o teto de gastos públicos como se fosse a chama que destruiu o museu. A demagogia impera e, em ano eleitoral, é engrossada por candidatos que querem angariar mais votos surfando na indignação pública.

Quando se desata o novelo da falta de condições estruturais de segurança do museu até sua destruição pelo fogo, vê-se uma novela característica das catástrofes nacionais. A verba para manutenção básica era ínfima e se tornou crítica agora, mas nunca foi suficiente. Em 8 meses, o museu recebeu algo como R$ 98 mil. E mesmo a verba anual total de quase R$ 700 mil é apenas um pouco maior do que o gasto do Legislativo com a lavagem de carros, segundo a Ong Contas Abertas.

Outras comparações vexaminosas são fáceis de fazer, mas o que há de comum nelas é a prioridade particular para os gastos, definidos por quem tem mais poder ou influência. Com penduricalhos, um juiz do Supremo, por exemplo, recebe por ano quantia quase equivalente à destinada ao Museu Nacional, o que torna claro que o problema principal não é tanto a falta de dinheiro, e sim sua alocação.

É mais importante aumentar o salário da elite do funcionalismo público, por exemplo, ou dar mais dinheiro para saúde, educação e manutenção de museus? O Congresso e o Judiciário não têm dúvidas na hora de escolher, tanto em um momento de escassez de recursos quanto em um momento de abundância. A aguda crise fiscal apenas explicita escolhas que talvez não fossem visíveis para muitos.

Os serviços prestados na ponta à população são de péssima qualidade e, para a grande massa da população, a precariedade de verbas é um mal permanente. Desabamentos decorrentes de chuvas intensas, morticínio nas estradas, fracasso em massa da educação decorrem de prioridades erradas, má alocação e gestão de verbas, em um roteiro conhecido em que a fiscalização pública e a falência da infraestrutura são os elos fracos da corrente. A crise atual tornou crível o fato de que o Estado brasileiro, em suas esferas federal, estadual e municipal, gasta 36% do PIB para pagar salários e pensões de seus funcionários - e em breve não haverá dinheiro para mais nada. O descaso com hospitais públicos, escolas e museus é o mesmo, difere, mas não muito, segundo a demanda - é menos visível aonde o público é menor, caso típico dos bens culturais.

Quando a infraestrutura é sucateada - os investimentos públicos já não repõem a depreciação do capital - é milagre as coisas funcionarem. Até mesmo água faltou para o trabalho dos bombeiros. Não é preciso muito para desvendar mais absurdos: nenhum museu público no Brasil tem seguro. O corporativismo domina no serviço público e isso impediu em parte que o Museu Nacional se livrasse da falta de recursos do Estado e fosse administrado por fundações, com ajuda do Banco Mundial, proposta feita há duas décadas e rejeitada pela UFRJ (O Globo, ontem). Houve aumento da dotação para a UFRJ, mas ele foi destinado ao pagamento de salários.

O país é pobre e não há recursos para tudo. O teto de gastos colocou em discussão a questão de onde gastar. Boa parte dos insatisfeitos com o teto prefere não sofrer constrangimentos nas despesas, porque sua parte até hoje sempre esteve assegurada - mesmo que museus peguem fogo.

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