quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Míriam Leitão: A Argentina no espelho

- O Globo

Crise argentina expõe dilema ao Brasil: quem promete ajuste rápido pode não conseguir, quem promete corte gradual pode não ter tempo

A crise da Argentina cria para nós um dilema. O presidente Maurício Macri assumiu afirmando que consertaria a difícil herança que recebera e faria isso gradualmente. Não teve tempo. Agora seu governo está contra a parede e ele tenta dobrar a aposta e correr com o ajuste que talvez não tenha como fazer. O próximo governo, seja qual for, receberá a herança de um país com grave desequilíbrio fiscal. Quem promete o ajuste imediato pode não conseguir, quem promete fazê-lo gradualmente pode não ter tempo.

Existem diferenças que nos favorecem na comparação entre os dois países. O Brasil tem alta reserva cambial, acumulada principalmente nos governos do PT. O país está com inflação e juros baixos alcançados na administração Michel Temer. Com esses três elementos — reservas, inflação e juros — nos distanciamos da crise argentina. Existe uma semelhança que nos ameaça, o déficit público criado pelo governo Dilma Rousseff ainda não foi vencido e continua alto.

Macri recebeu de herança um país com inflação alta, preços públicos reprimidos que, para corrigir, levariam a outro choque de preços, e déficit primário. Uma das suas primeiras medidas foi suspender os impostos sobre exportações que pesavam fortemente no agronegócio, principalmente o de soja. As retenciones foram reduzidas, porque ele havia prometido na campanha e porque é um imposto que aumenta o desajuste da economia. O tributo fazia o país perder competitividade e isso derrubava exportações, agravando a crise. Macri eliminou o imposto como um gesto antigoverno Cristina Kirchner. Só que esta semana, no seu pacote para aumentar receitas, voltou com o imposto.

A Argentina tem extrema fragilidade externa: pouca reserva e dívida dolarizada. Segundo relatório do banco brasileiro Itaú Unibanco, que tem operações na Argentina, 90% da dívida pública líquida do país é dolarizada. Isso significa que quando o dólar sobe — e ele já subiu 100% este ano, de 19 para 38 pesos — a dívida cresce e o rombo do país aumenta. A desvalorização atinge diretamente o custo do endividamento. A dívida brasileira é majoritariamente em moeda local. Aqui, se a desvalorização for forte pode provocar inflação, mas o fato de ela estar na meta reduz os riscos.

O Brasil ainda não sabe como resolver o problema fiscal. Os programas dos candidatos prometem equilíbrio em um ano (Bolsonaro), ou dois anos (Alckmin, Marina e Ciro), mas ainda não está claro como conseguirão. Ciro fala em aumento de vários impostos. O programa do PT não marca data, diz que será gradualmente e conta com uma reversão do baixo crescimento para ajudar na recuperação das receitas. O que o caso da Argentina mostra é que o gradualismo pode não dar certo. E que o bom humor em relação a um novo governo pode não durar. Em 2017, a bolsa argentina teve uma das três maiores altas do mundo. Subiu 72%. Este ano ficará entre as três piores, em dólar, queda de 53%, segundo o banco UBS.

O ajuste do novo governo brasileiro terá sim que ter data e parecer crível. O nosso risco não é o cambial que ameaça o vizinho, mas sim a dívida pública que subiu fortemente a partir de 2014 e continua sendo alimentada pelo déficit primário que em 2019 estará no seu sexto ano.

É comum falar no impacto da Argentina na exportação e na produção industrial brasileiras. Mas isso é apenas parte do problema. Uma instabilidade lá reflete aqui se há canais de transmissão, como os que o Brasil tem, déficit primário alto e persistente, dívida pública crescente e uma enorme incerteza eleitoral. Por isso, o real continuará na gangorra quando a volatilidade bater do lado de lá da fronteira.

Se olharmos no espelho, não vamos ver em nós a mesma situação da Argentina, mas em vários pontos o semblante será o mesmo. Se não tomarmos cuidado vamos repetir o destino de imitá-los nos erros. O Congresso brasileiro tem uma série de pautas-bomba engatilhadas, o Judiciário aumentou seus próprios salários e agora pode, só para não parecer incoerente, derrubar a MP que adia o reajuste dos servidores. Não faz sentido um país com um enorme déficit primário, com um orçamento que terá parte das despesas cobertas por crédito extraordinário a ser pedido pela pessoa que for eleita este ano, aumentar os salários do funcionalismo. A Argentina está cheia de alertas sobre o que não fazer. A decisão será nossa.

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