quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Silvana Krause: As capitanias herdadas e o centrão na política brasileira

- Folha de S. Paulo

O centro na Constituinte não era exatamente o mesmo do que hoje é assim denominado

As heranças herdadas se adaptam. Os velhos tempos não sucumbem e funcionam como matriz genética que carimba e cativa nossa alma política.

Na entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a “O Estado de S. Paulo”, em 18 de maio, houve um esforço para filtrar e separar o centro do centrão. O primeiro seria fundamentado em uma união do “Centro Democrático e Reformista”, a “banda boa” liderada por PSDB, DEM, MDB e PTB. O segundo, fisiológico, associado ao “toma-lá-dá-cá”.

“De lá para cá”, o espírito do centrão venceu? Diria que não somente venceu o desejo de FHC, um “centro limpo”, como provavelmente garantiu vagas em um próximo governo. O problema é que as siglas consideradas “desintoxicadas” por FHC são também contaminadas pelo espírito do centrão.

Independentemente de quem ganhar, tudo indica que boa parte dos associados do PSDB (PP, PTB, PSD, SD, PRB, DEM, PPS, PR) e outras agremiações de peso estão de prontidão para o que der e vier.

O centrão na Constituinte não era exatamente o mesmo que hoje é assim denominado. Porém, há uma lógica no seu funcionamento que é de ontem e de hoje, reside acima de uma ordem partidária, funciona ao lado dos tratados formais e está muito presente em legendas que não são “flash”, ou seja, aquelas que aparecem e desaparecem sem deixar rastros.

Deputados e senadores constituintes do centrão residiam, em sua maior expressão, no PMDB/MDB, PFL/DEM, PDS/PP e PTB e foram centrais para sustentar o mandato de cinco anos de Sarney. Não muito diferente foi a importância de lideranças destas mesmas legendas para a aprovação da emenda em 1997 que permitiu a reeleição de Fernando Henrique.

A aliança de Alckmin tem o suporte de partidos que em outros tempos já compuseram o centrão. O governo Temer também está habitado pelo centrão e foi fundamental para a aprovação do impeachment de Dilma. A oferta da candidatura pouco competitiva de Meirelles (MDB) sinaliza apenas a tradição de espera da legenda, já conhecida, para composições de um futuro governo.

Embora o termo centrão não seja aplicado aos governos do PT, é necessário reconhecer que lideranças de legendas do PP, MDB/PMDB, PL e PTB formaram um bloco para a sustentação da governança de Lula após a crise do mensalão e do governo Dilma. O PP de Maluf foi importante para a vitória de Haddad na eleição para a Prefeitura de São Paulo em 2012. O PRB, partido integrante do centrão de Alckmin, participou de três coligações nacionais lideradas pelo PT.

A atual configuração do centrão já ilustra a maldição da infidelidade. Ela está deitada no berço do funcionamento das capitanias herdadas e disputadas nas unidades da Federação. Aliados de Alckmin usam a conhecida receita para manterem seus feudos resguardados. Não garantem palanques para o candidato peessedebista e se rendem da esquerda à direita seguindo a ordem regional ditada. Exemplos são vários, como o PP na Bahia e Ceará associado com o PT. O DEM em Goiás construiu uma aliança estadual com legendas que vão desde apoiadores de Ciro a Alvaro Dias e Bolsonaro.

É preciso se ater ao significado e sentido dado ao centro nas democracias europeias após a Segunda Guerra e o que está colocado na tradição do nosso país que se repete nesta eleição. A experiência do trauma de polos extremos na disputa política gerou nestes países uma aversão a sobressaltos ou manobras políticas bruscas. O nosso centro é volúvel, desabitado de sentido capaz de produzir um projeto político próprio. Por ser amorfo, toma a forma do projeto com que se associa.

O PT foi buscar o centro especialmente a partir de 2005. Uma longeva relação de dez anos. Como num conto de fadas invertido, casou com a Bela, mas litigou com a Fera, em função dos novos ventos da zona cinzenta das circunstâncias. A Fera habitava a Bela. E sempre habitará, seja à direita ou à esquerda. O desafio é manter um controle que circunscreva a Fera dentro da Bela. É a conta a ser paga pela nossa democracia.
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Silvana Krause, é professora e pesquisadora de pós-graduação em ciência política na UFRGS; ex-bolsista da Fundação Konrad Adenauer

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