quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Cristiano Romero: Presidentes não podem agir como tiranos

- Valor Econômico

Dilma caiu por razões políticas, mas a crise pavimentou o caminho

O Brasil chegou a 2010 vivendo um momento mágico. Tendo vencido a guerra de 30 anos contra a inflação crônica, voltou a crescer a um ritmo respeitável (depois de duas décadas "perdidas"), com recuo da pobreza, acesso das empresas a crédito barato no exterior, investimento estrangeiro recorde no país (menor apenas que o recebido pela China). Depois de um longo inverno, o Brasil estava novamente na moda. Apesar dos muitos problemas não resolvidos, sentíamo-nos fortes para enfrentá-los.

Em 2010, a economia brasileira cresceu 7,5%, a taxa mais alta em 24 anos. A inflação - de 5,91% - estava relativamente alta para padrões internacionais, mas dentro do intervalo do regime de metas, na ocasião de 2,5% a 6,5%. O ritmo acelerado de expansão do PIB sobreveio à perturbadora crise mundial de 2008-2009. Depois de submeter-se a uma dieta fiscal que perdurou três mandatos presidenciais, em dois governos (Fernando Henrique Cardoso e Lula), pela primeira vez, o Brasil sobreviveu a uma crise externa sem sofrer disrupção.

Os 16 anos de FHC e Lula, os dois primeiros presidentes eleitos na Era do Real, consagraram alguns consensos, necessários à manutenção da inflação em níveis baixos, ao equilíbrio das contas públicas (condição sine qua non para conter o aumento da dívida mobiliária) e à garantia de um certo ritmo de crescimento do PIB, ainda que pequeno para as necessidades do povo brasileiro.

Alguns dos consensos são: disciplina fiscal, traduzida pela geração permanente de superávits primários (receitas menos gastos, exclusive, a despesa com juros) nas contas do setor público; regime de metas para a inflação, adotado pelo país desde meados de 1999 e que, de forma flexível, domou a inflação e diminuiu a volatilidade do produto; e o câmbio flutuante, fortalecido pela criação de um seguro (a acumulação de reservas cambiais) para o enfrentamento de crises de liquidez. Outros consensos: a ampliação da rede de proteção social e a realização de reformas institucionais.

Em 2010, portanto, nem o mais pessimista dos brasileiros - inclusive, os derrotados nas eleições daquele ano - imaginou que, oito anos depois, chegaríamos a uma eleição duvidando da estabilidade econômica e política arduamente conquistada ao longo de 33 anos de redemocratização. Em meio a um clima de euforia, Lula elegeu Dilma Rousseff, uma neófita em política, para sucedê-lo. Havia desconfiança no mercado, mas os eleitores acreditaram na palavra empenhada pelo petista.

O Brasil, porém, é mais complexo do que supõe a nossa vã filosofia. Do momento em que foi comunicada por Lula de que seria sua candidata ao dia em que venceu a disputa presidencial contra José Serra (PSDB), Dilma disse "amém" a tudo o que seu mentor lhe ensinou. Para sobreviver em Brasília e São Paulo, ela teria que, respectivamente, dialogar sempre com os expoentes de sua ampla base de apoio parlamentar e construir pontes com os banqueiros e os principais empresários do país. A missão, recomendou Lula, seria facilitada por Antonio Palocci, designado pelo ex-presidente para comandar a campanha e depois as áreas política e econômica do governo.

A obediência de Dilma durou pouco - Lula sabia que presidente no Brasil é, relativamente, mais poderoso que nos Estados Unidos e que, por isso, ela faria o que bem lhe entendesse; o que ele não esperava é que ela fosse mudar o que estava dando certo, razão última da sua chegada ao Palácio do Planalto.

Durante a transição de governo, no fim de 2010, quando se recusou a manter no Banco Central Henrique Meirelles - por este não se comprometer a entregar a taxa de juros real em 2% dali a quatro anos -, Dilma indicou que o rumo das coisas mudaria. Instalada no poder, levou apenas seis meses para derrubar Palocci, o fiador de Lula. Cercada de críticos da política econômica que a levou ao poder - e de bajuladores amedrontados com seus gritos -, Dilma mudou tudo e jogou o país na mais longa e penosa crise econômica de sua história, a que nos trouxe a esta encruzilhada eleitoral.

As disputas pacíficas de 2006 e 2010 deram lugar à turbulência em 2014 e à incerteza em 2018. A economia entrou em recessão durante a sucessão de quatro anos atrás. Os desequilíbrios que a aprofundaram nos anos seguintes já haviam sido contratados por Dilma. Em vez de avisar aos eleitores que faria um ajuste para corrigir os problemas, a ex-presidente foi aos píncaros do populismo ao prometer mais do mesmo. Eleita no segundo turno com dificuldade e pressionada por Lula, indicou que faria correção de rumo, mas, sempre mal assessorada, desistiu seis meses depois, quando a situação tinha começado a melhorar...

A crise voltou com tudo em meados de 2015. Dilma comprou brigas com a própria base de apoio e isolou o vice Michel Temer depois de lhe dar e tirar a articulação política. Achou que governaria apenas com o PT e, por tudo isso, com apenas 16 meses do segundo mandato, sofreu impeachment. Este não foi um golpe institucional, fruto de um ato ilegal, mas mostrou que nossa democracia tem falhas gritantes - uma delas: o presidente da Câmara não deveria ter o poder monocrático de decidir se um pedido de impeachment deve ou não tramitar; outra: vice-presidentes deveriam ter atribuições definidas em lei - nos EUA, presidem o Senado, portanto, não têm como conspirar contra o presidente -; e por fim: presidentes deveriam se aposentar compulsoriamente da política após uma reeleição.

Dilma caiu por razões políticas, mas foi a severa crise que ela produziu a responsável por pavimentar o caminho da deposição. A baixa institucionalidade brasileira explica por que um governo foi tão longe na destruição de políticas que ajudaram a tirar o país da hiperinflação, a organizar as contas públicas, a criar as condições para crescer e a enfrentar minimamente nossas chagas sociais. Fica a lição: mesmo eleitos, presidentes não podem agir como tiranos, ainda que aparentemente sob o manto das leis.

A tragédia dos anos Dilma disseminou na sociedade um forte sentimento antipetista. Ainda assim, encarcerado, Lula tem o apoio de cerca de 40% do eleitorado. Fernando Haddad, seu candidato, tem 21% das preferências, beneficiário da transferência de votos do ex-presidente e da desidratação de Marina Silva, cujos eleitores temem a vitória de Jair Bolsonaro. Este cresceu no vazio do fracasso político do governo Temer e tirou o PSDB da condição de antiLula.

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