terça-feira, 23 de outubro de 2018

Gilmar Mendes: Constituição de 1988 cresce na adversidade

- O Globo

A Constituição de 1988 completou 30 anos de vigência no último dia 5 de outubro. De início, quero salientar que é, sim, motivo de orgulho e comemoração para todos nós brasileiros. É o maior período de estabilidade institucional na República. Afirmo isso porque, em tempos de renovação política e nos quais tanto se ouve acerca de propostas de mudanças de todo jaez, penso ser um dever cidadão defender, clara e publicamente, a nossa Carta Magna.

No início dos anos 80, quando o processo de abertura do regime militar se intensificou, o debate sobre uma nova Constituição se fez presente. Uma sociedade em efervescência, ávida por crescimento, igualdade social e, sobretudo, liberdade, tanto no sentido negativo quanto no sentido positivo, procurava apressar o ritmo dos acontecimentos.

A liberdade no sentido negativo é a que busca proteger os indivíduos de intervenções estatais descabidas, cujo anseio se fazia sentir, mais nitidamente, na luta contra a censura à produção artística e cultural imposta pelo regime militar. A liberdade no sentido positivo, por sua vez, é a que almeja dar, aos cidadãos, a capacidade efetiva de participar das decisões políticas que guiarão a vida da sociedade.

A Constituinte de 1987/88 representou, exemplarmente, o prestígio da liberdade positiva, a valorização da participação da sociedade no processo de elaboração do novo texto constitucional e, talvez, seja exatamente esse o valor que tenha levado à derrocada do chamado “Projeto dos Notáveis”.

O farto catálogo de direitos fundamentais aprovado pela Constituinte, destacado logo em seus primeiros artigos, revela a preocupação em garantir as liberdades dos nossos cidadãos, de modo a sustentar uma democracia liberal(liberdade de expressão, de iniciativa, de locomoção, de imprensa, de reunião, de associação, de crença religiosa), sem jamais descurar do aspecto social e da dignidade da pessoa humana, buscando elencar direitos relativos ao trabalho, à educação, à saúde, à previdência e à assistência social, assim como engendrar os meios para torná-los efetivos.

Esses já seriam motivos bastantes para a celebração do novo texto Constitucional e para a criação de um “sentimento de Constituição” capaz de inculcar, em todos nós, o afeto e o respeito que ela merece. Nesse sentido, vale também homenagear os brasileiros —em sua grande maioria políticos — que, com sua habilidade, destreza, capacidade para o diálogo e determinação, foram responsáveis pela aprovação de nossa Constituição cidadã.

Claro que a Carta de 1988 contém alguns defeitos. Críticos dirão que ela é excessivamente analítica ou corporativista. Muitos deles revelam o momento de sua promulgação — o ano anterior à simbólica queda do Muro de Berlim. Mas são essas imperfeições que nos permitem avançar. Esses defeitos nos dão a oportunidade de exercer a crítica sobre o texto, visando, sempre, à sua melhoria e ao atendimento das necessidades da sociedade e do Estado brasileiro.

A Constituição de 1988 previu a forma pela qual pode ser reformada. As emendas constitucionais assumiram, entre nós, relevância singular, talvez sem paralelo em qualquer outro país. Elas são parte do debate político-eleitoral e a aprovação de várias delas reflete a nossa capacidade de evoluir.

Por essas razões, venho louvar não apenas os que contribuíram para a elaboração do texto original de 1988, mas também todos aqueles que, paulatinamente, contribuem para o seu aperfeiçoamento.

Cumpre realçar, ainda, aquela que me parece ser a principal virtude de nossa Constituição: a sua resiliência. Resiliência, essa, decorrente, muito provavelmente, de sua estrutura poliárquica, que fortalece não apenas diferentes órgãos do Estado, mas também diversos e múltiplos segmentos da sociedade.

A Carta de 1988 cresce na adversidade. Com ela, o país passou por momentos decididamente críticos: dois impeachments presidenciais; o enfrentamento de inflação firme e galopante; a sempre pacífica e democrática transição do poder, em todos os níveis da Federação; além de graves crises econômicas e políticas. Tudo isso se passou com marcos legais seguros e sem experimentos institucionais estranhos aos seus limites. Que, com ela, sigamos por mais 30 anos. E assim por diante.

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Gilmar Mendes é ministro do Supremo Tribunal Federal

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