sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Maria Cristina Fernandes: O silêncio empresarial e o futuro da democracia

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

Na semana anterior ao primeiro turno, um marqueteiro entrou numa sala no Itaim, zona sul de São Paulo, para ouvir uma proposta de trabalho. Lá estavam os donos de uma grande distribuidora, de um hotel e de uma empresa de aluguel de equipamentos. Nenhum deles a mando do presidenciável do PSL. Mas se uniram para patrocinar uma campanha na internet com o objetivo de eleger seu candidato. Dinheiro não seria o problema. Problema é o PT voltar ao poder.

Quarenta anos atrás, um grupo de empresários também decidiu ter voz mais ativa na política. Caminharam, no entanto, na direção oposta. Foram signatários do Documento dos Oito, que ajudou a derrubar a ditadura. Nesse desencontro cabe uma parte da história de um país que deu a cara a bater contra o autoritarismo e hoje não teme seu retorno.

Aos 36 anos, Roberto Muller era um dos responsáveis pela fama adquirida pela "Gazeta Mercantil" de jornal para empresários feito por comunistas. Neto de anarquista húngaro emigrado para Ribeirão Preto no fim do século XIX, Muller estudou química e integrou a cédula do PCB na Cosipa. Chegou a ser preso no navio Raul Soares, porão da ditadura atracado no porto de Santos. Ingressou no jornalismo junto com o golpe de 1964, pelas mãos de Claudio Abramo, na "Folha", ainda fichado num Inquérito Policial Militar.

Entre o pacote de abril e a queda do general Sylvio Frota, em 1977, Muller, como editor-chefe da "Gazeta Mercantil", mostrou aos empresários que a porta da ditadura estava destravada, à espera de quem a empurrasse. A história está registrada, entre outros, por dois ex-jornalistas da "Gazeta", Claudio Lachini ("Anábase, História da Gazeta Mercantil", Lazuli, 2000) e Maria Helena Tachinardi ("Roberto Muller Filho, Instituição, Política e Jornalismo", Imprensa Oficial, 2010).

A economia, depois do choque do petróleo de 1973, patinava. Endividados, industriais se queixavam dos juros, do câmbio e da preferência das estatais por compras no exterior. As famílias, pobres e ricas, colecionavam histórias de parentes e amigos perseguidos, torturados ou mortos pela ditadura.

Com a anuência do dono do jornal, Luis Fernando Levy, Muller mandou distribuir cinco mil cédulas aos dirigentes das maiores empresas do país para a eleição de seus líderes. Colheu 825 respostas. O mais votado foi o então presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e da Indústria de Base (Abdib), Cláudio Bardella, seguido por Antonio Ermírio de Morais (Votorantim), Paulo Vellinho (Springer-Admiral), Jorge Gerdau Johannpeter (Gerdau), Paulo Villares (Villares), José Mindlin (Metal Leve), Laerte Setúbal Filho (Itausa), Severo Gomes (Cobertores Parayba), Augusto Trajano de Azevedo Antunes (Caemi) e Amador Aguiar (Bradesco).

Os dois últimos caíram fora do grupo, mas os demais, animados pela repercussão do fórum que teve início com essa eleição, toparam prosseguir com a ideia de um manifesto à nação. Muller convocou dois jovens economistas, Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manuel Cardoso de Mello, para trabalharem na redação de um documento, a ser assinado pelos oito.

O texto deveria harmonizar a opinião - e as ênfases - dos empresários e as linhas gerais propostas pelos redatores. Bardella, Ermírio e Severo eram os mais entusiasmados com a ideia de incorporar o apelo à redemocratização, a liberdade sindical e a justiça social. E Gerdau, o mais focado na ênfase aos descaminhos da política industrial.

Aos olhos de hoje, o texto subscrito por sete industriais e um banqueiro passaria despercebido se incluído no programa de Guilherme Boulos à Presidência: "A presença da desigualdade social na cena brasileira se tornou crítica, pondo em risco, a longo prazo, a estabilidade social e exigindo, de imediato, soluções compatíveis com as exigências de uma sociedade moderna".

Não destoaria, tampouco, de um manifesto sindical: "Qualquer política social consequente deve estar baseada numa política salarial justa, que leve em conta, de fato, o poder aquisitivo dos salários e os ganhos de produtividade médios da economia".

A urgência da abertura surgia com uma pressão desabrida: "O desenvolvimento econômico e social tal como o concebemos somente será possível dentro de um marco político que permita uma ampla participação de todos". E estaria à altura de uma relutante frente democrática que hoje se dispusesse a liderar disputa de 28 de outubro: "Só há um regime capaz de promover a plena explicitação de interesses e opiniões, dotado ao mesmo tempo de flexibilidade suficiente para absorver tensões sem transformá-las num indesejável conflito de classes: o regime democrático".

A indústria respondia, naquela época, por quase um terço da economia, o triplo do que é hoje. Beneficiava-se, ainda, de um financiamento que lhes permitia pagar apenas 20% da correção monetária. Nem assim, houve hesitação em relação ao tom que se deveria imprimir ao documento que seria lançado, finalmente, em junho de 1978, ainda no governo Ernesto Geisel.

Reunido com Belluzzo na pequena sala de seu apartamento nos Jardins, Muller recordou aquele lançamento: "Quem fez o melhor resumo do seu impacto foi Marcos Viana, então presidente do BNDE [ainda sem o s]; ele disse que naquele dia havíamos derrubado o regime porque seu tripé militares-tecnocracia-empresários havia trincado".

Belluzzo trabalhava, junto com João Manuel Cardoso de Mello, na assessoria do então deputado paulista Ulysses Guimarães, cujo partido, MDB, ganharia novo fôlego com a adesão da indústria ao movimento pela redemocratização. Anos mais tarde, o ex-redator do Documento dos Oito, seguiu com Muller para a equipe econômica do primeiro governo civil, na gestão Dilson Funaro no Ministério da Fazenda de José Sarney.

Uma década depois, o ativismo empresarial da abertura se transformaria nos lobbies da Constituinte que originariam o Centrão. Nos 30 anos de promulgação da Carta, o bloco que se transformou numa agência de despachantes de interesses empresariais ainda busca um lugar entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro, mas os capitães da indústria deixaram de ter protagonismo.

Hoje professor da Unicamp e colunista do Valor, é de Belluzzo a expressão "ciranda financeira", que apareceria, pela primeira vez, no documento de 1978 para definir a expansão da dívida pública com o lançamento de títulos com taxas de juros locais cada vez mais elevadas destinados a retirar o excesso de liquidez que havia no país decorrente de crescente endividamento externo.

O economista atribui o esvaziamento do protagonismo industrial do qual foi o articulador à financeirização das corporações. Com produção e força de trabalho fincadas em território nacional, a indústria tinha seu destino amarrado ao da nação. Foi nesse país que surgiu o sindicalismo de Luiz Inácio Lula da Silva. O que sobrou dessa indústria se tornou refém da receita de suas tesourarias. "Essas indústrias dependentes da financeirização hoje são tocadas por executivos mais preocupados em bater as metas do fim do ano do que com o país", diz.

Os donos do dinheiro mais engajados nesta eleição, grandes redes varejistas e gestores de investimentos, estão hoje mais alinhados ao candidato do PSL. A boa vontade de Bolsonaro com a indústria nacional ficou patente com a devassa que pretende fazer no BNDES. Não há sinal mais eloquente dos vetores trocados que o separam do protecionista Donald Trump.

Entre os lojistas, o apoio mais emblemático é o do dono da cadeia Havan, de Santa Catarina. Multado pelo TSE por ter gravado e divulgado vídeo em redes sociais, Luciano Hang disse que o país está sob a ameaça de se alinhar com o comunismo para destruir a sociedade, a família e os empregos. Perguntou ainda se seus funcionários e fornecedores estão preparados para o fechamento da empresa se a esquerda, denominação em que coloca PT e PSDB juntos, vencer.

Mais elaborado, o ex-diretor do Banco Central e sócio da Mauá investimentos, Luiz Fernando Figueiredo, disse a Ricardo Balthazar, da "Folha de S. Paulo", que o irrealismo da proposta de Bolsonaro em acabar com o déficit público em um ano não o preocupa, porque a turma dele é de "primeiríssima linha e sabe exatamente o que e como fazer". Rechaçou ainda a ameaça à democracia alertada por oráculos do mercado, como a revista "The Economist": "E como alguém que é parlamentar há 20 anos, como Bolsonaro, pode ser considerado antidemocrático"?

Mal iniciado o segundo turno, Bolsonaro deu um nó no mercado ao colocar em dúvida a privatização da Eletrobras e a reforma de Previdência, além de fazer propostas de impacto fiscal, como um décimo terceiro para o Bolsa Família. A bolsa espirrou, o câmbio tossiu, mas assim como faz em relação ao histórico do candidato em seu embate com a civilização, a febre crônica do mercado foi debelada com panos frios.

Entre os industriais, o ponto mais fora da curva que surgiu nesta campanha foi o presidente do conselho da Klabin e terceira geração da família na empresa, Horacio Lafer Piva. Em entrevista a Marli Olmos, do Valor (12/9/2018), Lafer Piva disse que os empresários atribuem os tropeços da competição a dificuldades sistêmicas: "Só que reclamam muito, mas fazem pouco". Afirmou ainda que, para mudar, seus pares têm que assumir que competitividade passa também pela "coragem de discutir subsídios, isenções e custos". E, finalmente, que apesar de Lula, pelo social, e Fernando Henrique, pela economia, "merecerem bustos", ainda se mantiveram longe do que chamou de agenda urgente do país, sobre a qual Bolsonaro se debruça com "inconsistências".

É um remanescente da cepa de 1978, que a sucessão presidencial - e o silêncio empresarial que a caracteriza - ruma para arquivar nos escaninhos da história.

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