segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Cacá Diegues: Um poder suave

- O Globo

Se não for abandonada como supérfluo, não importa se a cultura vai ganhar um ministério próprio

O presidente eleito Jair Bolsonaro tem anunciado suas decisões sobre a organização de seu governo. Às vezes, até volta atrás do que já andara considerando fato consumado. Mas nem mesmo por desmentidos sabemos quais são seus planos para a área da cultura. Discutimos apenas hipóteses, quase sempre inspiradas em declarações enviesadas de campanha. Não temos conhecimento de ninguém do novo governo que esteja pensando no assunto, ninguém que esteja tomando a iniciativa de propor ideias sobre cultura para os próximos quatro anos. Nem mesmo os superministros, como Paulo Guedes, Sergio Moro, Onyx Lorenzoni ou Augusto Heleno.

Não estou me referindo ao debate recorrente sobre a manutenção do Ministério da Cultura, causa pela qual lutamos tanto ao longo dos primeiros anos de redemocratização. O MinC foi uma invenção da democracia emergente, e isso o marcou indelevelmente. Quando o presidente Michel Temer, recém-empossado, tentou acabar com o ministério, a reação dos produtores de cultura foi de fúria, como se se estivesse tramando o fim da atividade ou, pelo menos, a subestimação de seu valor. Uns lutaram mais, outros menos, mas nenhum produtor de cultura permaneceu insensível. Agora, parecemos todos recolhidos a uma reflexão que ainda não deu fruto.

O Ministério da Cultura nasceu com o governo de José Sarney, herança de Tancredo Neves, que o deixou criado e ocupado antes de morrer. José Aparecido de Oliveira, intelectual mineiro responsável por poderoso apoio à sua existência, foi o primeiro a ocupá-lo, tornando-se uma espécie de fundador da novidade. Tancredo entregou-lhe a concepção do que seria o MinC, e Aparecido correspondeu a essa confiança, criando um núcleo moderno e eficiente de administração pública da cultura.

No governo seguinte, o primeiro eleito pelo voto direto da população, a cultura sofreu um golpe histérico de um presidente que se vingava infantilmente da ausência de apoio de artistas e intelectuais à sua candidatura. Era tão evidente que esse desprezo oficial estava desconectado da realidade, que o governo Fernando Collor foi obrigado a criar a Lei Rouanet. Uma lei que, por um desses milagres políticos em que as circunstâncias se impõem, e os homens no lugar estratégico das decisões não podiam ser mais apropriados, foi criada pelo então secretário Sergio Paulo Rouanet. Até hoje, essa lei é um documento contemporâneo, uma vitória da ousadia e da lógica, num ambiente em que nem sempre elas prevalecem. Algumas atividades culturais, como o cinema, não se beneficiam da Lei Rouanet, não têm acesso a ela. Ao longo do tempo, o cinema ganhou suas próprias regras nas relações com o Estado, através da Lei do Audiovisual, implementada no início dos anos 1990.

Se, neste próximo governo, a cultura for tratada com respeito e entusiasmo, com empenho burocrático e interesse real do Estado, se não for abandonada como supérfluo, não importa se vai ganhar um ministério próprio ou não. A cultura tem que ser uma atividade de interesse do Estado brasileiro, disposto às medidas possíveis e necessárias para que ela se torne representativa e poderosa, instrumento de nosso desenvolvimento nacional, em qualquer que seja o escaninho para o qual for encaminhada pelos homens públicos do país.

A cultura é uma inquestionável responsabilidade do Estado, é ela que nos diz quem somos e acaba por dizer para onde devemos ir. Por isso mesmo, vive uma certa esquizofrenia natural em que precisa de absoluta liberdade para se manifestar, mesmo que dependa materialmente do Estado que tem interesses em suas tendências. Todo país do mundo, do capitalismo neoliberal americano ao capitalismo de Estado chinês, protege e investe em seus valores culturais para existir como nação.

Podemos simplificar sua importância na política dos três Fs, proclamada durante o governo de Franklin Roosevelt, nos Estados Unidos: flag follows films (a bandeira segue os filmes). Foi através da cultura (sobretudo da música e do audiovisual), de seu soft power, que os Estados Unidos impuseram, na segunda metade o século XX, sua liderança mundial, vendendo os produtos expostos nos filmes e um modo de vida especial (o chamado american way of life) que se espalhou pelo planeta e manteve o país à frente do mundo, independentemente das armas que poderia produzir e usar contra seus inimigos. A cultura brasileira, com sua força, originalidade e diversidade, pode exercer papel semelhante, capaz de levantar as energias desse melancólico século XXI. Depende do que o Estado brasileiro pretende e espera dela.

Nenhum comentário: