sábado, 3 de novembro de 2018

Daniel Aarão Reis: O guarda da esquina

- O Globo

Bolsonaro conseguiu a proeza de apresentar-se como uma alternativa a um sistema do qual fazia parte

Para o desgosto e medo de muitos, consumou-se a vitória de um candidato de extrema direta — inédita na história brasileira. As tentativas anteriores — empreendidas por Plínio Salgado e Enéas Carneiro — não haviam chegado a 10% dos votos, apesar das tradições conservadoras. O próprio Jair Bolsonaro era considerado um azarão histriônico. Sua candidatura vagava no reino do inimaginável. Como em relação aos que o precederam, previa-se uma inevitável derrota, dado seu nível de rejeição. Mesmo que chegasse a um improvável segundo turno, seria vencido por um poste, diziam os adversários mais otimistas.

Mas não foi o que aconteceu.

Trata-se, agora, de explicar e interpretar o inesperado.

O sistema político falido foi, sem dúvida, um dos principais fatores. Incapaz de representar as demandas da sociedade, desqualificou-se. A cegueira dos principais partidos em propor sua reforma foi um suicídio. Envolvidos em conchavos eleitoreiros, tomados por um irritante aristocratismo, alérgicos a qualquer autocrítica, partidos e lideranças mostraram-se insensíveis à onda de descontentamento que crescia.

A crise econômica e os milhões de desempregados agravaram o quadro, acirrado pelos péssimos serviços públicos — transportes, saúde e educação —, cuja situação foi denunciada — em vão — pelas grandes multidões em 2013. Contribuiu também a situação ameaçadora da (in) segurança pública, encolhendo as pessoas, temerosas de bandidos, policiais e balas perdidas, num cotidiano infernal que ninguém aguenta mais. Para coroar o divórcio com grande parte da opinião pública, uma gestão mal conduzida de questões morais delicadas — a respeito das quais prevaleceram a omissão e a corrida sem princípios pelos votos dos religiosos conservadores —jogou no colo dos tribunais a decisão sobre assuntos que deveriam ser discutidos abertamente.

Todas estas questões — não resolvidas — levaram à exasperação social e à descrença nas instituições democráticas. Bolsonaro surfou nesta onda, conseguindo a proeza de apresentar-se como alternativa a um sistema do qual fazia parte. Deu sequência a uma tradição de líderes carismáticos que encarnam a vontade difusa — mas forte — de mudar “tudo o que está aí”. Com um linguajar direto, simplório, denunciando carências e mazelas, propondo soluções apocalípticas, o capitão do Exército convenceu a maioria de que ele era o “salvador da pátria” da vez.

É verdade que a vitória deve ser relativizada. Considerando-se o conjunto do eleitorado, teve um pouco menos de 40% de votos. E muitos de seus sufrágios foram mais resultado do veto ao adversário do que de uma escolha satisfeita. Assim, seria um equívoco caracterizar como “fascistas” ou “nazistas” os que o escolheram. O procedimento, além disso, impediria qualquer diálogo com pessoas que tateiam caminhos e que poderão, num momento seguinte, perceber o erro em que incorreram.

Seria pueril, contudo, não reconhecer a expressividade do sucesso de Bolsonaro. E a ameaça que significa para a frágil democracia que foi possível construir neste país. Não se trata apenas de políticas autoritárias que serão formuladas com incidência geral. Mas da intolerância que tenderá a se disseminar em toda parte. As delações —estimuladas — entre vizinhos, entre estudantes contra os professores, entre funcionários e chefes, entre empregados e empregadores. As intimidações e a prática da violência contra adversários reais ou imaginados, as medidas de arbítrio de chefes, chefetes e chefões e até mesmo de juízes e autoridades, como ocorreu recentemente.

Para lidar com estes perigos, torna-se necessária a formação de uma frente ampla democrática, a cargo da cidadania, em cada lugar de trabalho, de estudo e de moradia, que não pode ficar à espera de nada e de ninguém.

É urgente a construção de linhas de defesa para a democracia, aqui e agora. Subestimar esta urgência é esquecer um antigo e sábio conselho: o maior perigo de uma ditadura não é o próprio ditador, mas o guarda da esquina.

Um comentário:

Eliana França Leme disse...

Excelente artigo, retrato fiel da trajetória de Bolsonaro sté ser eldito, além dos perigos que esta onda conservadora que fez dele seu condutor pode provovar. De fato, urge constrirmos focos de resistência a esse movimento com ares e coloração nazistóide.