domingo, 25 de novembro de 2018

Estabilidade como bem público: Editorial | O Estado de S. Paulo

A luta do Brasil contra a inflação é uma das páginas mais significativas da história nacional. Por muito tempo se considerou que a alta epidêmica dos preços era inevitável, a tal ponto que o País criou mecanismos institucionais para conviver com esse fenômeno, especialmente a indexação de preços. O Plano Real, contudo, rompeu essa lógica, convidando os brasileiros a imaginar como seria sua vida se os preços fossem estáveis. Os cidadãos aderiram entusiasticamente ao plano porque entenderam, após décadas de inflação crônica, que o valor da moeda é um bem público, que deve ser preservado a todo custo.

Contudo, a manutenção dessa conquista correrá grave risco caso não se alcance também a estabilidade política. No 30.º aniversário da Constituição de 1988, em outubro, atingimos o mais longevo período democrático ininterrupto da história da República do País, mas a experiência está longe de ter sido estável – nesse intervalo, dois presidentes foram destituídos e todo governo que começa é obrigado a conviver com a sombria ameaça de crises cada vez mais graves.

Em grande medida isso se dá porque o sistema político, extremamente fragmentado, obriga o presidente da República a construir maioria parlamentar muitas vezes heterogênea e ideologicamente difusa, que tende a se consumir em lutas internas por poder. A esse monstrengo se deu o nome de “presidencialismo de coalizão”, espécie de parlamentarismo adaptado ao sistema presidencialista.

Nesse caso, o presidente fica à mercê das forças pulverizadas do Congresso, sendo obrigado a negociar não só com partidos insignificantes, mas também com deputados que só representam a si mesmos. Não é incomum que o comando do partido defina o voto de um jeito e parlamentares desse partido, por interesses pessoais, votem de outro, desmoralizando qualquer esforço de negociação política.

Não é preciso grande perspicácia para perceber que a estabilidade política é praticamente impossível num cenário assim. Chegou-se a esse ponto graças à possibilidade ilimitada de criação de partidos políticos, agravada por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, de 2006, que derrubou a chamada “cláusula de barreira”, isto é, a imposição de obstáculos para a sobrevivência de partidos nanicos. Na ocasião, os ministros do STF, por unanimidade, consideraram que a cláusula era, no dizer de um deles, “inaceitável instrumento de exclusão de minorias partidárias”. Assim, a título de proteger a democracia, chancelou-se a multiplicação desenfreada de partidos com escassa representatividade, colaborando decisivamente para a construção do mito da inevitabilidade do presidencialismo de coalizão.

Felizmente, no ano passado, o Congresso instituiu a cláusula de barreira, que já começou a ser aplicada na eleição deste ano. De uma tacada só, 14 dos 35 partidos perderam acesso ao Fundo Partidário e provavelmente vão se fundir a outros ou simplesmente deixarão de existir. Com isso, inverte-se a tendência de dispersão política e cria-se uma dinâmica que tem o potencial de aliviar a crise de representação partidária. Com menos partidos para escolher, o cidadão será convidado a votar naquele que realmente represente seus interesses – e a negociação política entre o Executivo e o Legislativo deve se tornar mais estável e previsível.

Assim como o Plano Real restabeleceu o valor da moeda, essa singela reforma política pode afinal ter o condão de começar a restabelecer o valor do voto. Para que esse processo se complete, no entanto, é necessário não apenas ampliar a reforma política, corrigindo o sistema partidário e eleitoral, mas rogar que o Judiciário deixe de mudar a jurisprudência eleitoral a cada pleito.

Do modo como é regulada hoje, a política se transformou em atividade de grande risco. Dificulta-se o equilíbrio que seria o ideal para a vida nacional produtiva e pacífica, aumentando a disposição para o confronto – a ponto de a sociedade já não se sentir estimulada a exigir dos políticos que se dediquem à conciliação de interesses para a aprovação das medidas urgentes para o País. As lideranças responsáveis precisam conclamar os cidadãos a considerar a boa política – baseada no livre debate de ideias, e não no conchavo e na burla – como um bem público.

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