sábado, 17 de novembro de 2018

João Cabral de Melo Neto: O Auto do Frade

O Auto do Frade, de João Cabral de Melo Neto, escrito em 1984, conta a história do último dia de Frei Caneca, o dia de sua morte por fuzilamento. Herói da Revolução Constitucionalista de 1824, Caneca é condenado a morte após ter sido um dos líderes da chamada Confederação do Equador. No auto, temos seu cortejo por toda a cidade de Recife, aos olhos de toda a população, como numa procissão, até ser fuzilado, finalmente, longe dos olhos do povo.

Confira 12 trechos deste longo poema

Acordar não é de dentro,
acordar é ter saída.
Acordar é reacordar-se
ao que em nosso redor gira. (p. 17)

Padre existe é para rezar
pela alma, mas não contra a fome. (p. 23)

Por que será que ele não fala,
nem diz nada sua boca muda?
Senhor que ele foi das palavras,
não há uma só que hoje acuda. (p.26)

– Parecia que estava bêbado.
Era álcool ou sua desrazão?
– Bêbado da luz do Recife:
fez esquercer sua aflição.
– Mas pareceu falar em versos.
É isso estar bêbado ou não?
– Mesmo sem querer fala em verso
quem fala a partir do coração. (p. 31)

Eu era um ponto qualquer
na planície sem medida,
em que as coisas recortadas
pareciam mais precisas,
mais lavadas, mais dispostas
segundo clara justiça. (p. 36)

Sei que traçar no papel
é mais fácil que na vida.
Sei que o mundo jamais é
a página pura e passiva.
O mundo não é uma folha
de papel, receptiva:
o mundo tem alma autônoma,
é de alma inquieta e explosiva. (p. 36)

Risco nesse papel praia,
em sua brancura crítica,
que exige sempre a justeza
em qualquer caligrafia;
que exige que as coisas nele
sejam de linhas precisas;
e que não faz diferença
entre a justeza e a justiça. (p. 37)

Parece que o sagrado é poeira:
Muito facilmente é raspado. (p. 45)

– Veio andando calmo e sem medo,
ar aberto de amigo, e brando.
– Não veio desafiando a morte
nem indiferença ostentando.
– Veio como se num passeio,
mas onde o esperasse um estranho. (p. 57)

– É um homem como qualquer um,
e profeta não se pretende.
– É um homem e isso não chegou:
um homem plantado e terrestre.
(…)
Viveu bem plantado na vida,
coisa que a gente nunca esquece. (p. 61)

O peso do morto é o motor,
porém o carrasco é o operário. (p. 69)

– Esperar é viver num tempo
em que o tempo foi suspendido.
– Mesmo sabendo o que se espera,
na espera tensa ele é abolido.
– Se se quer que chegue ou que não,
numa espera o tempo é abolido.
– E o tempo longo mais encurta
o da vida, é como um suicídio. (p. 74)

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