quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Maria Cristina Fernandes: Na diplomacia, a política é filha da geografia

- Valor Econômico

O poder é didático e seu exercício o delimita

Veio do embaixador Marcos Azambuja uma rara manifestação da diplomacia, durante a campanha eleitoral, sobre danos à imagem externa do Brasil decorrentes da alongada prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A ousadia desautoriza a interpretação de que sua cautela em relação à política externa do próximo governo se traduza por adesismo.

Para quem se define como um 'fanático da moderação', a indicação do diplomata Ernesto Araújo para a chancelaria do governo Jair Bolsonaro parecia um prato cheio. A cobrá-la, porém, Azambuja opta por exercê-la. Quer dar tempo ao jovem diplomata. Cultiva a crença de que o poder é didático e seu exercício o delimita.

Aos 83 anos, 31 a mais que Araújo, Azambuja ingressou no Itamaraty antes de o novo chanceler ter nascido e acumula, de diplomacia, quase tanto tempo quanto o escolhido de Bolsonaro tem de vida. Pinça João Neves da Fontoura (governo Dutra), Afonso Arinos (governo Jânio Quadros), ou Francisco Rezek (governo Collor), entre os muitos chanceleres de fora da carreira, para dizer que não é a ausência de experiência em política externa que marca a escolha, mas de trajetória reconhecida. Registra o ineditismo da escolha de um nome que nunca chefiou um posto no exterior ou uma secretaria-geral. A inexperiência o preocupa mas não o alarma.

Dispõe-se a dar uma chance a Araújo mesmo quando apresentado aos escritos encontrados no blog do jovem chanceler. O ex-presidente que Azambuja acredita ter representado a imagem de um país cordial, afável e que, finalmente, havia chegado lá, é, na definição do futuro condutor da política externa brasileira, "o poste de Maduro, atual gestor do projeto bolivariano".

O embaixador distingue a retórica de campanha, durante a qual Araújo alimentou seu blog (www.metapoliticabrasil.com), da retórica do poder. Não se furta, porém, a oferecer um mapa de voo, que parece útil não apenas para o chanceler, como também a alguns de seus futuros colegas de Esplanada e até ao presidente eleito, afoitos que parecem em virar pelo avesso o Itamaraty, do Mercosul ao Oriente Médio. A ver:

1) Diplomacia é algo que se faz olhando para frente, para o retrovisor mas também em volta. O Brasil tem dez vizinhos e uma longa trajetória de relações regionais.
Não se pode escapar do entorno e de sua circunstância. Se o Mercosul não é prioridade, a relação com os vizinhos tem que ser. Não é possível fazer uma estrada de ferro para ligar o Brasil a Noruega, mas de trem se chega à Bolívia. Estão no Cone Sul, dois dos maiores êxitos da diplomacia brasileira, o de ter se mantido como mediador, durante a Guerra das Malvinas, que antagonizou a vizinha Argentina e o Reino Unido, e a construção de Itaipu na delicada tríplice fronteira. Na diplomacia, a política é filha da geografia.

2) Todo cuidado é pouco com atrelamentos excessivos. O chanceler (Juracy Magalhães) do primeiro governo da ditadura chegou a dizer que aquilo que era bom para os Estados Unidos era bom para o Brasil. Acabou por enfiar tropas brasileiras numa desastrada intervenção militar na República Dominicana. Liderada pelos Estados Unidos, em 1965, a intervenção visava a evitar uma nova Cuba no Caribe, mas acabou colocando um ditador no poder. É no Caribe que hoje, novamente, mora o perigo. Numa postagem, a 10 dias do primeiro turno, o futuro chanceler valeu-se de ato falho do presidente Michel Temer, que falou "nosso país, a Venezuela", em discurso na ONU, e o contrapôs ao discurso, na mesma ocasião, do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciando sanções contra o "regime socialista de Maduro e seus patrocinadores cubanos" e conclamando as nações lá reunidas para a restauração da democracia na Venezuela.

3) O país tem vocação multilateralista. E a razão é simples. Não tem poder para atuar sozinho. O risco de se descumprir essa regra é o Brasil ficar falando sozinho. Foi mais ou menos o que aconteceu quando a diplomacia da era lulista imiscuiu-se no Oriente Médio como mediador, ao lado da Turquia, de uma solução para o Irã. Quis fazer um gol de placa num lugar do planeta em que o jogo está sempre embolado no meio de campo. O país acabou atropelado pelos EUA que deixaram claro o passo maior que as pernas da diplomacia tupiniquim. No dia 25 de setembro, o novo chanceler parecia estar em cima de pernas de pau ao escrever no seu blog: "Ao perceber que a política externa é a luta pelos rumos da humanidade, onde o Brasil, com seu tamanho e sua população, tem a obrigação de posicionar-se, o brasileiro não ficará indiferente. Pois é um povo corajoso, rebelde, forte, impetuoso e, se lhe mostrarem a batalha titânica que está sendo travada, ele jamais ficará de fora".

Azambuja reconhece que a inquietação que move jovens diplomatas, como Ernesto Araújo, venha da prudência excessiva da tradição brasileira. O país, reconhece, erra mais pela demora do que pela precipitação. Chegou tarde, por exemplo, nas duas guerras mundiais. Mas também custou a se dar conta da centralidade de dois temas da política internacional, direitos humanos e meio ambiente, precisamente dois alvos eleitorais do novo presidente.

Azambuja aposta que os imperativos da diplomacia brasileira - acesso aos grandes diretórios do poder (Conselho de Segurança da ONU ou G8) e aos mercados, prestígio e visibilidade - aos poucos tendem a conformar a atuação do futuro chanceler.

A crença de que nada educa mais do que a realidade veio antes mesmo da posse quando o Bolsonaro foi obrigado a recuar, frente à reação dos países árabes, fregueses preferenciais do agronegócio brasileiro, da bravata da mudança da embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém.

Não se espere do veterano embaixador notas de pessimismo em relação à piora da imagem externa do país. O Brasil pôs 120 milhões de eleitores nas ruas e, sob o escrutínio da Organização dos Estados Americanos, não apresentou irregularidades. Cumpriu os ritos da democracia ao escolher Bolsonaro. O comedimento de Azambuja é comum a servidores do Estado preocupados em evitar que o avião que decolará em 1º de janeiro, devidamente autorizado pela cabine de comando, se espatife no chão.

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