sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

César Felício: Scripta manent

- Valor Econômico

Presidente implantou lógica parlamentarista

Não há precedentes na história democrática brasileira para as vitórias que Michel Temer conseguiu no Congresso durante sua presidência. O presidente que se vai na próxima semana fez aprovar em primeiro turno na Câmara uma mudança constitucional que engessa o gasto público por 20 anos, na véspera de um feriado, em 10 de outubro de 2016, o que não é pouco. Seis meses depois, às portas de nada menos que o Dia do Trabalho, conseguiu da Câmara a chancela para a reforma que demoliu a CLT.

Mas isso não foi tudo. A hecatombe desencadeada por Joesley Batista, que explodiu na tarde de 17 de maio de 2017, apenas desviou o foco presidencial, mas manteve o padrão de eficácia do presidente no Congresso. Temer passou a trabalhar exclusivamente para a autopreservação e salvou-se duas vezes. No dia 2 de agosto, derrubou a primeira denúncia formulada pelo então procurador geral da República, Rodrigo Janot. Em 25 de outubro, foi a vez de a segunda denúncia cair.

Foram quatro vitórias emblemáticas de Temer no plenário da Câmara, algo sugestivo para um presidente nascido do Congresso e abençoado pelo Supremo, entre abril e maio de 2016. Época em que a Câmara aprovou o afastamento de Dilma Rousseff em um domingo, com direito a espocar de rojões de papel picado em plena votação, sob o pulso firme de Eduardo Cunha. O STF só entendeu que o deputado do MDB não podia presidir uma casa do Legislativo poucos dias depois de completado o serviço em relação ao impeachment.

O rio desaguou no mar porque correu no sentido certo. O vice-presidente nomeou um ministério integralmente formado por parlamentares. Implantou uma lógica parlamentarista no país. Não houve mulher ou negro na primeira equipe ministerial formada porque a lógica do governo Temer não era a de pactuação com o eleitorado, mas sim com o Congresso. Sarney, Fernando Henrique e Lula lotearam a administração. Temer a feudalizou.

Sua administração tinha em Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, uma âncora, que reverteu as expectativas negativas do mercado em relação ao déficit público galopante, mas seus motores foram múltiplos na área política. Na linha de frente, havia quatro pontas de lança: Geddel Vieira Lima, Moreira Franco, Eliseu Padilha e Romero Jucá.

Em uma semana Jucá estava fora, com a divulgação do célebre diálogo com Sérgio Machado sobre a necessidade de um grande acordo nacional.

Era um produto derivado da à época chamada "megadelação" da Odebrecht, que vitimaria também Geddel e o então ministro do Turismo, Henrique Eduardo Alves. A segunda onda de denúncias, movida por Joesley, trouxe o bombardeio para o Palácio do Jaburu.

Foi nesta disjuntiva, entre a força extrema no Congresso e a sombra das suspeitas de corrupção, que oscilou Temer em seus dois anos de estadia na Presidência. Muito se escreverá sobre a sobrevivência de Temer no poder depois do 17 de maio. Um dos fatores, sem dúvida, foi o fato de os áudios de Joesley não comprometerem apenas o presidente. O mais discreto dos operadores de Temer, Aécio Neves, também foi atingido.

Na luta para garantir o próprio pescoço, Aécio travou o desembarque do PSDB do governo. Para um Planalto acostumado a ceder um Refis ou uma anistia do Funrural a cada votação fundamental, a aliança com Aécio saiu barato. Qualquer um que tenha ouvido os áudios do senador com o empresário se lembra do exaspero do tucano com a incapacidade do governo federal em barrar o ritmo das investigações. Aécio redobrou a aposta a favor de Temer porque a alternativa era pior.

O tucano temia o que poderia sobrevir de uma queda do presidente em maio de 2017. A falta de um roteiro de saída para o governo Temer causava receio a toda a elite em Brasília, mas só o PSDB vivia uma guerra intramuros. Um processo sucessório em eleição indireta, da qual os tucanos seriam protagonistas, seria fatal para Aécio. Não é possível desvincular a trajetória de Temer da do senador mineiro.

Muito se falou até o começo deste ano de uma candidatura à reeleição de Temer. É difícil pensar que o emedebista e seus acólitos realmente tenham considerado a sério a ideia. Mesmo sem o caso Joesley, Temer nunca teve aprovação a seu governo superior a 14%.

O presidente transitou nas pesquisas de intenção de voto na faixa inferior a 5%, o que condiz com o perfil de sua carreira. Temer diversas vezes se colocou em São Paulo como pré-candidato a algum cargo majoritário - prefeito, governador ou senador - sempre com o mesmo propósito: mudar de patamar na negociação das alianças.

O que de fato parece ter sido a intenção de Temer foi a de influir na escolha do candidato do PSDB à Presidência. O nome preferido de Temer, está claro, era o de João Doria, a partir do momento que este se elegeu prefeito de São Paulo, em 2016. A alternativa Doria à Presidência começou a se apagar em meados de outubro do ano passado. Por volta desta época Temer inflou o balão de ensaio do 'semipresidencialismo', que poderia permitir ao MDB manter-se no poder mesmo fora do jogo de alianças nacionais. A ideia de Temer era obter aval do Supremo para a possibilidade de uma mudança no sistema de governo sem necessidade de plebiscito. A conjura foi abortada assim que ganhou espaço na imprensa.

Também foi sepultado pela mesma época o último ensaio da reforma da Previdência. Convenientemente, a reforma saiu de cena diante de uma situação de fato, a decretação da intervenção federal no Rio de Janeiro. Em fevereiro deste ano não havia propriamente uma sequência de calamidades na área que justificava a medida extrema, ou pelo menos nada que fosse mais sério do que o que se passava no Estado em novembro e muito menos de o que aconteceria em março, com o assassinato da vereadora Marielle Franco.

Há os que acreditam que a reforma poderia ter sido aprovada se Temer não tivesse que desviar seu foco em função do áudio de Joesley. É uma crença que o próprio presidente ajudou a propagar, mas a história contrafactual é complicada. A negociação com o Congresso só teve início no segundo trimestre de 2017. O texto base passou na Comissão Especial no dia 3 de maio, duas semanas antes de Joesley. Em momento algum a contabilidade de votos que o governo fazia indicou atingir os 308 votos necessários para a aprovação na Câmara. É uma incógnita o que aconteceria se o rumo fosse outro. O fato é que Temer desistiu da votação. Como ele consignou a Dilma, as palavras voam e vale o escrito.

Nenhum comentário: