segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Fernando Gabeira: Um cão no supermercado

- O Globo

Percorrer o Brasil atenua o impacto das más notícias. A imprensa não pode deixar de divulgá-las: são parte da realidade

Florianópolis. De novo na estrada. Glória a Deus. Digo isso porque no período eleitoral entrevistei o Cabo Daciolo. No final da entrevista, me convidou para ser ministro de seu governo. Daciolo esperava vencer, no primeiro turno, com 51%. Aceitei o convite mas lembrei: “Olha, Daciolo, Deus costuma escrever certo por linhas tortas.” Tínhamos que estar preparados para a derrota.

Portanto, glória a Deus: de novo peregrinando pelo Brasil, constato o valor dessa escolha.

No meio da semana, telefonei para casa e soube de uma notícia triste: um cachorro foi morto a golpes de barra de ferro, no supermercado Carrefour. Logo na semana em que o cachorro do velho Bush comoveu o mundo deitado defronte ao caixão de seu dono.

Estava no meio de um trabalho com cachorros. Não podia fugir desse tema. Passei a tarde seguindo um cão-guia e seu dono pelas ruas de Camboriú, Itajaí e Navegantes.

É uma história sobre a escola de cães-guia Helen Keller, em Camboriú. A cadela se chama Alegria e é tão importante para o seu dono que ele tatuou no braço o nome e a pata de sua amiga. Impressionante segui-los, pois ela é muito concentrada, ignora latidos, paqueras e segue no caminho de casa perto do hospital de Navegantes.

Esta semana, conheci também Atobá, um labrador de cara grande. Ele é chamado de Doutor Atobá no Hospital Joana de Gusmão, onde faz um trabalho. Brinca com crianças com câncer e às vezes as acompanha nos seus dias finais.

Além disso, Atobá ajuda na terapia de crianças que sofreram paralisia cerebral ao nascer e ajuda os que têm problema de mobilidade.

Atobá vive na casa do cirurgião plastico Luís Augusto. É essencial para seu filho, que sofreu uma doença grave. Ele acredita que uma das qualidades terapêuticas do cão é despertar amor e lembra que na simbologia chinesa coração e cachorro se equivalem.

Foi uma longa conversa. Tenho espaço apenas para lembrar um detalhe essencial. Como cirurgião plástico num hospital infantil, ele conhece duas faces do cachorro, o amor da vida de seu filho, mas também as inúmeras reparações que teve de fazer em vítimas de mordidas de cão feroz.

Percorrer o Brasil atenua o impacto das más notícias. A imprensa não pode deixar de divulgá-las: são parte da realidade. Mas é animador ver experiências como a formação dos cães-guia, ainda tão poucos para a grande demanda nacional. É bom ver o país com seus lados diferentes, como o doutor Luís Augusto vê os cães. E continuar gostando muito.

Finalmente, numa semana dedicada a eles, não posso me esquecer dos cães farejadores de maconha no Colorado: foram aposentados com a legalização da cannabis. Espero, pelo menos, que tenham boas lembranças de seu longo período do labor olfativo.

De uma certa forma, voltarão à realidade assim como o Brasil no princípio do ano, quando o governo começa de fato. Por enquanto, as notícias dos bastidores são um pouco complicadas. Rusgas no partido do governo, intrigas entre generais e políticos. E as pautas-bomba no Congresso, ministro do STF prendendo gente em avião.

Uma nota sobre as atividades financeiras de um assessor do então deputado Flávio Bolsonaro: movimentou R$ 1,2 milhão em 12 meses e vive de salário.

Para os mais velhos, é uma cantiga que assombra, e esperamos que seja apenas uma alucinação de cães farejadores aposentados. O ano que vem trará as respostas. A cadela Alegria tem um método de trabalho que me encanta. É toda atenção quando é necessário. No momento de poupar energia, não vacila: encosta a cabeça no chão e olha demoradamente para o vazio, fecha os olhos, abre de novo.

Em termos políticos, pode ser um bom programa para as festas de fim de ano. Uma semana de trégua, se tanto, já bastaria.

A transição de governo foi um processo um pouco confuso. Os índios devem estar mareados com os balanços do barco da Funai. A nova ministra de Direitos Humanos declara que índio é gente. Pensei que isso estava resolvido há séculos, quando os religiosos perguntavam se índio tinha alma.

O ano que vem será quente mesmo para quem acha que o aquecimento global é uma invenção marxista.

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