sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

José de Souza Martins: Política e religião

- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

As eleições de 2018 foram realizadas num cenário de utilização extensa de instrumentos extrapolíticos para domar a consciência do eleitorado e dela extrair a cooptação e a rendição eleitoral. Foi o caso da religião, os púlpitos usados como instrumentos de transformação do voto consciente, livre e democrático em voto de cabresto. Não só a democracia foi comprometida, e o teria sido qualquer que fosse o vitorioso, como a própria política foi mutilada.

Já no declínio do regime militar, o general Golbery do Couto e Silva, em conferência da Escola Superior de Guerra, explicou aos presentes o que era a política da abertura lenta, gradual e segura. Ela culminaria com a devolução do poder aos civis e aos partidos políticos que dela se originariam para expressar a diversidade ideológica da sociedade brasileira.

Reconhecido especialista em geopolítica, era dos raros militares brasileiros que sabiam que a mudança do regime em 1964 tinha muito pouco a ver com uma reação ao comunismo e muito mais a ver com a questão do alinhamento do Brasil no cenário da Guerra Fria.

As esquerdas levavam o país para o "lado errado", o do bloco soviético. O bloco "certo" era o da hegemonia americana. Nessa polarização havia razões de mercado e razões de segurança nacional. Mas Golbery se enganava ao supor que as esquerdas eram uma esquerda só, a da hegemonia dos comunistas russos. Aqui, as esquerdas estavam fragmentadas, eram críticas dos soviéticos e devoravam-se entre si, como acontece até hoje.

Nessa perspectiva, ele havia constatado o fato novo de que religiões estavam se envolvendo na política brasileira e apossando-se de nosso imaginário político. Supostamente, alinhando-se às esquerdas. Portanto, estavam anulando o que é próprio da política. A chamada abertura tinha por propósito principal, em suas palavras, devolver a política ao seu leito natural, aos partidos.

A República proclamada pelos militares, em 1889, propôs-se a eliminar os vestígios do Antigo Regime, dentre eles o caráter oficial da religião católica. Já antes da promulgação da Constituição de 1891, um decreto de Deodoro antecipava essa separação. O Brasil deixava de ter religião oficial, o Estado não se meteria nas questões religiosas e as religiões não se meteriam nas questões de Estado. Cem anos depois da Revolução Francesa, a moderna civilização política chegava ao país.

A decisão não só libertava o Estado do influxo das crenças, mas libertava a Igreja Católica da manipulação do Estado para propósitos em tudo divorciados dos assuntos propriamente religiosos. As outras religiões, chamadas então de acatólicas, também ficavam protegidas contra as diabólicas tentações do poder.

Com a República, religião passou a ser assunto privado e pessoal, assunto de foro íntimo. Na verdade, uma moderna concepção protestante da fé. No afã de poder, os protestantes e evangélicos, que foram decisivos para aqui fundar a República, vem se tornando os principais inimigos do republicanismo brasileiro. Tentam se apossar das instituições do Estado e a definir orientações de fundo religioso para questões políticas.

Cultos e cerimônias religiosas têm sido celebrados em recintos oficiais, como o Congresso Nacional. Câmaras municipais têm tornado obrigatória a leitura da Bíblia em suas sessões. Ferem o princípio democrático da pluralidade religiosa.

A República laica foi testada logo depois de sua proclamação. O Dr. Miguel Vieira Ferreira, pastor da Igreja Evangélica Brasileira, militar, abolicionista, republicano, doutor em ciências matemáticas e físicas, engenheiro, convocado em 1891 para compor o corpo do júri pela Justiça do Rio de Janeiro, pediu que, em respeito às novas leis, fosse removido da sala das sessões o crucifixo que ali havia.

Nascia a chamada questão do "Cristo no júri", que se arrastaria por anos. O caso foi parar na Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados e lá recebeu parecer de Quintino Bocaiúva, republicano exaltado, que estava ao lado de Deodoro na manhã da proclamação da República.

Tergiversou ele e situou o alcance da separação entre Estado e igreja: religião é assunto pessoal e subjetivo, sua prática e não seus símbolos. A atitude protestante desencadeou extensa reação nacional, com procissões e entronizações da imagem de Cristo crucificado nos tribunais.

O presidente agora eleito vacila e oscila em face de seu débito eleitoral para com os púlpitos, sobretudo os neopentecostais. Dá demonstrações de que resiste ao assédio ao traduzi-lo nos termos de outra lógica de poder, a sua, que ainda pede desvendamento. Lógica restritiva e antipluralista, de medo à democracia da diferença, que não é apenas verde, mas verde e amarela.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Desavessos - Crônicas de Poucas Palavras” (Com-Arte).

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