domingo, 2 de setembro de 2018

Luiz Werneck Vianna *: Transições

- O Estado de S.Paulo

O Brasil não pode ser uma cabeça de ponte na ‘nuestra América’ para o fascismo...

Marcas de formação nos indivíduos e nas nações, como nos ensinaram a psicanálise de Freud e a teoria social de Tocqueville no genial A Democracia na América, nos acompanham desde o nascimento e, se podem ser modificadas pela ação consciente dos homens ou por circunstâncias imprevistas em suas trajetórias, não são passíveis de erradicação e ficam conosco, para o bem ou para o mal, impressas como tatuagens irremovíveis.

Os estudos de História comparada, presentes nos grandes clássicos do pensamento social, de Montesquieu a Barrington Moore, passando por Tocqueville, Marx, Weber – que dedicou sua monumental obra a eles –, elenco que inclui Gramsci em suas explorações sobre quais tipos de sociedades ocidentais estariam mais propensas às revoluções – a Inglaterra, por exemplo, não estaria –, são fartos em demonstrar o papel das origens na formação dos Estados e das sociedades. Assim, compreender a Alemanha importaria em analisar o papel das elites junkers, agrárias, conservadoras e de formação militarizada, em seu protagonismo na hora decisiva da unificação e criação do seu Estado, e, no caso americano, do fato de sua sociedade ter sido obra de emigrados de adesão religiosa ao protestantismo, cujos ideais de República e de sociedade queriam implantar em terra nova.

A literatura sobre o tema é pródiga e avança sobre outros tantos casos, como os da Itália, do Japão e da Índia, não deixando de fora os casos da Ibero-América. A relevância do tema não é apenas acadêmica, já que ela diz respeito à identificação do terreno em que estamos pisando. A crônica política destes tempos de sucessão presidencial insiste no tom do desencanto e das ilusões perdidas, especialmente dos setores que se autointitulam a esquerda do nosso espectro político, em razão da sua frustração com o desenlace da crise política que abalou o País após o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Com efeito, durante seu curso – tudo indica, encerrado – viveu-se aqui como que uma terra em transe, com manifestações de rua e passeatas de empalidecer as francesas, aparentando prometer, como essa esquerda desejava, a hora de ruptura catastrófica com nossas instituições.

Foi um tempo em que se coqueteava com o tema das revoluções, cuja porta de entrada seria a derrubada do governo constitucional de Michel Temer, com a imediata convocação de eleições gerais, provavelmente com poderes constituintes e demais assuntos de igual calibre. A sucessão presidencial, confirmando o papel taumatúrgico das eleições nas crises políticas brasileiras, no entanto, nos devolveu ao Brasil real, dissolvendo no ar as fabulações revolucionaristas. Mais uma vez passamos a conviver com o eterno retorno dos processos de transição, com o qual veio à luz nosso Estado-nação – não conhecemos, como se sabe, ao contrário da América hispânica, revoluções nacional-libertadoras. Mesmo registro político, aliás, com que interrompemos o regime do autoritarismo militar que nos dominou por duas décadas.

É ele, agora, apesar da pantomima ensaiada em torno da candidatura Lula ao tentar ameaçar nossa democracia com a cantilena contra o nosso sistema de Justiça, que se impõe atrás desse teatro de sombras em que se ocultam alguns protagonistas. Pois aquilo que se encoberta é o fato de já estarmos numa transição do longo ciclo da modernização autoritária de Vargas a Dilma para um novo tipo de relações entre o Estado e a sociedade, centrada na participação social e no aprofundamento da democracia, tanto por processos que revolvem os fundamentos materiais de nossas estruturas, em especial no mundo do trabalho e da produção, quanto pelas mudanças ideais que se manifestam em nossa capacidade de reflexão sobre nós mesmos.

Os debates presidenciais aclaram o ponto, mesmo que vindos de narrativas toscas e rústicas, contrapondo candidatos que se situam no campo favorável a essa transição aos contrários a ela, na pretensão de darem continuidade ao processo de modernização autoritária, jogando para baixo do tapete o fato de que ela foi levada à exaustão no governo Dilma. A força do tema se faz presente até mesmo em candidaturas avessas a ele, ora em Bolsonaro, que faz profissão de fé no liberalismo econômico em oposição ao capitalismo de Estado, ora de modo latente em Ciro Gomes, embora se apresente como herdeiro da experiência do lulismo.

Narrativas são apenas narrativas. Na vida real, fora os candidatos que parecem habitar em hospícios – pegando carona em divertida crônica de Fernando Gabeira – ou viver nas primeiras décadas do século 20 no seu culto a experimentos falidos, os demais, principalmente os de ofício na política, não ignoram que tanto o movimento das coisas quanto o dos homens e das mulheres apontam de modo inexorável para o fim da era Vargas, esticada até o limite pelo seu pastiche do lulismo. O patriarcalismo – uma das pedras de sustentação do autoritarismo em nossa sociedade, exemplar no São Bernardo de Graciliano Ramos – está com seus dias contados e aqui e alhures o gênio de Keynes não serve mais para guiar nossos passos na economia de hoje, como no íntimo um acadêmico como o candidato Fernando Haddad não pode desconhecer.

Paixões e interesses à parte, estaremos no tempo que se abre adiante no terreno áspero e difícil das transições em que não é mais noite e o dia ainda não chegou, cabendo à política bem compreendida acelerar sua festiva aparição. Contudo não poderemos fechar os olhos aos perigos que nos rondam, pondo em xeque a singular cultura que aqui criamos, nós brancos, índios e negros, tudo erraticamente misturado, sem identidade definida, porque somos, como sustentava o gênio de Euclides da Cunha, uma construção voltada para futuro em busca da realização de ideais civilizatórios. O Brasil não pode ser uma cabeça de ponte na nuestra América para o fascismo em qualquer dos disfarces com que se apresente.
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* Sociólogo, PUC- Rio

Bolívar Lamounier *: Os dois cavaleiros do apocalipse

- O Estado de S.Paulo

O bolsonarismo, como o fundamentalismo esquerdista, tende ao pensamento mágico

Engana-se quem pensa que o fundamentalismo político é privativo dos que se identificam como “de esquerda”. Agora, nos escombros deixados pelo furacão Dilma Rousseff, surgiu um fundamentalismo que se apresenta como “de direita” e que àquele se assemelha em certos aspectos cruciais. Refiro-me ao bolsonarismo.

O fundamentalismo de esquerda, cujo principal representante entre nós é o petismo, prometia conduzir-nos ao paraíso terrestre da sociedade sem classes. O bolsonarismo promete passar o País a limpo com uma só cajadada, livrando-o do crime, da corrupção, do patrimonialismo e do corporativismo. Assentado sobre uma crença infantil num big-bang primordial, num imaginário quilômetro zero, isento de marcas negativas deixadas pela História, ele se propõe, como objetivo, a refazer o País de alto a baixo. A questão de fundo é de uma clareza meridiana. Esse novo fundamentalismo surgiu entre os escombros deixados pelo furacão Dilma Rousseff. Juntos, o colapso econômico e a corrupção sistêmica aguçaram o desejo de mudança. Agora todos querem (queremos) mudanças profundas, enérgicas, abrangentes - o que é ótimo. Mas daí ao mito romântico do big-bang primordial e aos mantras do “governo forte” e do “salvador da pátria” vai uma grande distância.

Assim como o fundamentalismo esquerdista, o bolsonarismo tende ao pensamento mágico, com certo cariz totalitário. O que lhe escapa, e é a pedra angular da filosofia liberal-democrática, é que todos os governos têm sua ação necessariamente limitada pela realidade social. Mais ainda no regime democrático, a política é sempre e necessariamente uma atividade com fins limitados. A “refundação radical” e o quilômetro zero não passam de piedosas lorotas. Essa limitação fundamental se deve, desde logo, à escassez, ou seja, ao montante sempre insuficiente dos recursos que um governo é capaz de mobilizar a fim de resolver de forma cabal os problemas que considera prementes. Exemplifico: o Brasil reinveste anualmente 16% de seu PIB; a China reinveste 40%, cresce a taxas persistentemente superiores à média mundial e, mesmo assim, ainda abriga um oceano de pobreza.

O candidato Jair Bolsonaro dá a entender que resolverá o problema da violência facilitando o acesso do cidadão comum a armas de fogo. Uma resposta pífia, já se vê, para o crítico problema que adotou como carro-chefe de sua propaganda. Mas, antes disso, aí pelo menos há uma variação. Curioso seria se sua solução consistisse tão somente em mandar o Exército, providência que o presidente Michel Temer pôs em prática no Rio de Janeiro desde o início deste ano, com resultados reconhecidamente modestos. Também aqui não descabe especular que o candidato Bolsonaro não consegue enxergar além dos estritos limites do pensamento mágico. Parece crer que os criminosos são uma parcela fixa da sociedade, bastando, pois, aniquilá-la para que o crime como tal desapareça. É exatamente assim, aliás, que uma proporção elevada dos seguidores do deputado Bolsonaro vê a influência do pensamento de esquerda no Brasil.

Com Bolsonaro, disputa entre PSDB e PT será para ir ao segundo turno, diz FHC

Para tucano, atacar capitão é gol contra e Haddad e Alckmin terão dificuldades similares

Thais Bilenky | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Jair Bolsonaro (PSL) antecipou a tradicional disputa entre PT e PSDB para o primeiro turno.

O tucano recebeu a Folha em sua fundação, em São Paulo, na quarta (29).

Neste sábado (1º), ele comentou o veto à candidatura de Lula. “A decisão do TSE [Tribunal Superior Eleitora] já era esperada. A Lei da Ficha Limpa está vigiando e é clara quanto aos requisitos para o registro de candidatos. Lei de iniciativa popular, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente Lula.”

• O sr. está surpreso com a resiliência de Bolsonaro? 
Tenho uma visão mais analítica. O mundo todo está sofrendo modificação na percepção das pessoas e, em alguns setores, alguém que simbolize a ordem tem alguma chance. As pessoas estão com medo do futuro, horrorizadas com a corrupção, a economia está parada e tem muita violência.

• Havia expectativa de que, com debates e entrevistas na TV, ele começaria a derreter.
Não sou de menosprezar a potencialidade das pessoas. Não quero que ele ganhe nem creio que vá. Por isso mesmo não se pode desprezar o que ele significa.

• O sr. já disse que discorda da expectativa de que seja PT contra a direita, seja Alckmin, seja Bolsonaro, no segundo turno. Inclusive, o sr. aposta que pode vir a ser Bolsonaro e Alckmin.
Isso.

• Qual deve ser a estratégia para o Alckmin para chegar ao segundo turno? 
Eu não sou estrategista eleitoral, não sei. Pelos dados, onde a cultura estatal tem mais força, ricos e pobres votam pelo Estado. Quando tem menos força, a mesma coisa. Não é tão ricos contra pobres, que foi a tradução habitual do que acontecia entre PT e PSDB, azuis e vermelhos. O que está acontecendo? Está tudo fragmentado. Os partidos não são expressivos e os que são, vêm de setores que têm mudanças.

• O PT tem simpatia crescente, chegou a 24%. 
Mas onde cresceu? Não foi entre trabalhadores, foi geral. A ligação da classe com o partido deixou de contar. Tem mais força no Nordeste, porque o Lula representa uma espécie de Padim Ciço, que deu resultados para as pessoas. Os outros partidos nunca tiveram muita expressão.

• O PSDB nesse sentido fracassou? 
Bom, a pergunta é casca de banana [risos]. O PSDB mudou muito, o Brasil também, e sofreu os abalos. Bem ou mal, até agora, ele e o PT expressavam visões mais de Estado ou mais de sociedade, era essa a diferença. [Agora] tem mais gente expressando a mesma coisa, dos dois lados, mas mais do PSDB.

• O PSDB tem 4% de simpatizantes. 
A eleição não é PT contra PSDB, é fulano contra beltrano. Sempre foi assim. Ou você acha que o PSDB ganhou a eleição quando eu ganhei? Eu ganhei. Ou que o PT ganhou quando Lula ganhou? Lula ganhou.

• Aliados advogam que Alckmin deve esconder o PSDB.
Não precisa nem deve, vai ser denunciado pelos outros. O PSDB não está no governo, este é o PMDB.

• O PSDB está com o Aloysio Nunes no governo e esteve após o impeachment. 
O povo não sabe, não se liga nisso. Uma coisa somos nós, intelectuais, jornalistas, que vivemos nesse meio. Para o povo, tem que mostrar como é o Geraldo. É uma fragilidade das instituições democráticas. O desempenho da personalidade, do líder, conta mais que os partidos.

• A personalidade do Alckmin é criticada porque não move multidões. Ele deve trabalhar de que forma? 
Eu movo multidões? O que diziam de mim? Um professor, fala melhor francês que português, o que é mentira! A população vai olhar duas coisas. Primeiro, o que levo com isso? Está sempre subjacente o que eu ganho. Segundo —falo por mim—, vai ter que acentuar as características que a pessoa tem. Que características tem Alckmin? É experiente, não está envolvido em corrupção.

• Tem alguns processos judiciais em curso. 
Mas você vai ver e não é nada. Como Haddad, não tem nada.

• Há processos envolvendo aliados, o cunhado, Laurence Casagrande.
Não conheço, mas Geraldo põe a mão no fogo por ele. [Lula] está preso e deixou de ter voto? Por que Geraldo vai deixar de ter porque não sei quem está metido?

• O sr. acha que a mensagem de Alckmin está certa?
Qual é a mensagem? Eu não sei ainda.

• Por exemplo, o jingle diz que ele é cabeça e coração.
Em campanha, acho eu, você tem que ser do jeito que você é. Geraldo não pode ser uma pessoa extravagante, porque ele não é. Tem que mostrar que é bom ser como ele é para governar o Brasil. Estamos frente a uma situação em que tem muita falta de rumo. Bolsonaro diz que vem com tacape e põe ordem. Geraldo tem que dizer que não precisa de tacape para pôr ordem.

• Como os dois poderiam ir juntos para o segundo turno?
Não sei até que ponto [a polarização entre] azul e vermelho vai sumir mesmo. Porque os dois têm estrutura, muitas prefeituras, enraizamento, história.

• O MDB também. 
E vai sumir? Não. O MDB sempre fez o que está fazendo agora. Não está jogando para presidente da República, está jogando para poder repetir...

• De depois aderir ao governo eleito?
Sim. Se tiver força, vai ter que negociar com ele. Você acha que foi o Partido Republicano que elegeu Trump? Não.

• Mas se não fosse o Partido Republicano ele não se elegeria. 
É o que estou dizendo. É uma soma da estrutura com a capacidade de expressar um sentimento da população.

• Alckmin e Bolsonaro disputam o mesmo eleitorado?
Mais ou menos. Uma parte do pessoal estatista vai votar no Bolsonaro também. Eu não sou uma pessoa assertiva que vai dar tal coisa, porque depende. O desempenho dos candidatos é importante, o jeitão deles é importante. A democracia é assim. Se quer garantias, na China é tudo mais garantido que aqui.

• Que eleitorado Alckmin belisca para chegar ao segundo turno?
Como o PSDB foi crescendo? Bom, eu ganhei em toda parte, não conta. Era outro momento. Cresceu basicamente de São Paulo para o Sul. Centro-Oeste vai até o Acre. Chega no Rio, perde. Em Minas, às vezes ganha, às vezes perde, e no Nordeste inverte. Acho que a estratégia deve ser consolidar o que tem, e não arriscar onde não tem. A escolha da vice foi correta.

• No Sul, Bolsonaro tem 30% e Alckmin, 6%.
Mas não começou a campanha ainda. Acho muito importante fazer pesquisas e tal, mas a dinâmica eleitoral é de confronto. O confronto está começando a se dar. Reitero, acho que o candidato do PSDB tem que concentrar onde sempre teve mais votos. Aí tem que brigar com quem? Bolsonaro.

• Tem espaço para os dois?
Pode ter. A mesma dificuldade do PSDB, o PT tem também de entrar no Rio, no Nordeste, porque é paulista,.

Merval Pereira: Placebos ao povo

- O Globo

Além de postergar ao máximo a passagem do bastão, garantindo para si a exposição pública de ‘preso político’, Lula talvez queira menos que o PT vença a eleição do que ver nascer um novo líder à sua sombra

A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de permitir que o candidato a vice Fernando Haddad participe da propaganda eleitoral no rádio e na televisão, como se candidato a presidente fosse, é mais uma das muitas heterodoxias a que têm se submetido os tribunais superiores da Justiça brasileira no pedregoso caminho provocado pela crise política e econômica que retira do PT a hegemonia política do país.

Os ministros do TSE imaginaram que a campanha de descrédito internacional do nosso sistema judiciário promovida pelo PT fosse amenizada com essa concessão que não está prevista na legislação, assim como a permissão de que a presidente impedida Dilma Rousseff não perdesse seus direitos políticos, podendo hoje candidatar-se ao Senado por Minas Gerais.

Se vai ou não se eleger é questão irrelevante, pois irrelevante será sua eventual participação no Senado, diante da quebra da Constituição que vem sendo provocada pela campanha de agitação e propaganda política do PT, para o que o partido é sem dúvida competente.

O que preocupa é que essa competência seja dirigida a desmoralizar a Justiça brasileira, se estiver em jogo o interesse imediato do líder messiânico, que paira acima dos interesses do país, o que dizer de seu próprio partido.

A substituição de Lula pelo candidato a vice deveria ser uma decisão natural e imediata, mas, em vez disso, procura o líder preso cultivar a imagem de perseguido político, pensando evidentemente num futuro em que a anistia será a primeira prioridade de um eventual petista que porventura chegue ao poder.

Bernardo Mello Franco: A rendição do PT

- O Globo

O julgamento do TSE começou em agosto e terminou em setembro. Tudo para cassar o registro de Lula antes do início da propaganda na TV

O relógio marcava 01h14min de sábado, dia 1º, quando a ministra Rosa Weber fez um desabafo: “Tenho até dificuldade de raciocinar”. A sessão extraordinária do TSE começou em agosto e terminou em setembro. Foram 11 horas e 12 minutos de falatório, com breves intervalos. Tudo para cassar o registro da candidatura de Lula antes do início da propaganda eleitoral.

O veto já era esperado, mas o voto do ministro Luís Roberto Barroso incluiu uma pancada adicional no PT. Além de perder o candidato que lidera as pesquisas, o partido ficaria proibido de fazer campanha até formalizar sua substituição. O tempo da sigla na TV seria ocupado por uma tela azul. O advogado Luiz Fernando Casagrande protestou. Ele lembrou que há quatro anos um candidato morreu, e seu partido continuou no horário eleitoral enquanto não anunciava a substituta. Cassar o tempo dos petistas, como propôs Barroso, só reforçaria a tese de perseguição judicial. Os ministros pensaram melhor e decidiram recuar. Horas depois, foi ao ar o primeiro programa do PT, já estrelado por Fernando Haddad.

O episódio ganha importância por outro detalhe. Ao contestar a punição extra, o advogado jogou a toalha sobre o essencial. “O PT se rende à decisão”, disse, referindo-se ao veto à candidatura. “Nós perdemos hoje aqui. Lula está fora. Não pode mais aparecer como candidato a presidente”, acrescentou.

A fala indica que o velho pragmatismo petista está de volta. O partido ainda fará barulho, mas não parece disposto a cometer suicídio eleitoral. A indicação de Haddad deve ser oficializada nos próximos dias, depois de mais uma consulta a Lula em Curitiba. Enquanto o TSE enterrava a candidatura do ex-presidente, seu afilhado confraternizava com “golpistas” em Fortaleza. Ele posou para fotos com Eunício Oliveira, chefe local do MDB. O senador apoiou o impeachment e comanda um latifúndio de cargos no governo Temer.

Bruno Boghossian: No tempo de Lula

- Folha de S. Paulo

Sob nostalgia, sigla despersonifica campanha para segurar eleitor por 5 semanas

Quando Lula entrou no carro preto da Polícia Federal em 7 de abril, seu eleitorado balançou. As pesquisas mostravam uma disparada do percentual de brasileiros que diziam acreditar que o ex-presidente não seria candidato. O petista ainda liderava a disputa, mas seu índice de intenção de votos caiu pela primeira vez desde 2016.

Desde então, o PT não vive mais a ilusão da candidatura Lula, apesar da insistência pública. O discurso de que o ex-presidente poderia concorrer foi, inicialmente, uma ferramenta útil para aglutinar aqueles eleitores duvidosos. Em última instância, o partido superalimentou o personalismo para conseguir despersonificar sua campanha.

Ainda que a promoção de Fernando Haddad à cabeça de chapa seja iminente, sua condição de porta-voz deve perdurar ao menos um pouco. Um vídeo divulgado pela sigla horas antes de a Justiça Eleitoral barrar oficialmente o ex-presidente dava o tom da mensagem.

“Tenho andado por todo o país e cruzado com muitas histórias. É grande a saudade que as pessoas sentem do tempo de Lula”, afirma Haddad na abertura do filme.

Eliane Cantanhêde: Sem Lula lá

-O Estado de S.Paulo

Fachin ficou isolado no TSE ao forçar a elegibilidade de um inelegível

É de uma ironia incômoda que tenha sido justamente do relator da Lava Jato no Supremo, Edson Fachin, o único voto no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a favor da candidatura à Presidência da República de alguém condenado e preso pela própria Lava Jato. Fachin perdeu de 6 a 1 no julgamento que impediu o ex-presidente Lula de continuar brincando com a Justiça e o eleitor.

O voto de Fachin surpreende, e de certa forma choca, por partir de quem partiu e pela incongruência. O ministro reconheceu que Lula, como ficha suja, é flagrantemente inelegível. Mas considerou que uma recomendação de um comitê quase diletante da ONU se sobrepõe às leis brasileiras. Advogado, professor de Direito, relator da Lava Jato, ministro do Supremo e agora também do TSE, Fachin não sabe que:
1 – O Comitê de Direitos Humanos da ONU não representa Estados, apenas reúne peritos independentes, e não pode determinar nada, obrigar nada, só fazer relatórios?

2 – Dos 18 integrantes do comitê, apenas dois (dois!), segundo o relator do registro de Lula no TSE, Luiz Roberto Barroso, subscreveram o texto do comitê que pretendia manter Lula candidato fazendo campanha a partir da cela da PF de Curitiba?

3 – Ao produzir uma recomendação de tamanha ousadia, os dois peritos estrangeiros nem sequer se deram ao trabalho de ouvir o contraditório, de pedir informações ao Estado brasileiro sobre o que se passava internamente?

4 – A delegação permanente do Brasil em Genebra se manifestou oficialmente contra qualquer consequência prática da recomendação do comitê sobre as eleições no Brasil?

5 – O comitê, segundo Barroso, não tem nenhum papel jurisdicional e suas recomendações não têm efeito vinculante, não se sobrepõem às leis brasileiras, não são obrigatórias e, portanto, nem preveem alguma sanção caso ignoradas?

6 – O comitê é uma coisa, o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU é outra coisa? Esse, sim, representado por Estados?

Vera Magalhães: Puberdade democrática

- O Estado de S.Paulo

Brasil precisa superar a adolescência, sob pena de ficar senil sem nunca ter sido adulto

Quanto vale a democracia para você? E para o seu candidato a presidente da República? Para mim ela é um valor absoluto, não passível de negociação, flexibilização, tergiversação ou relativização. O compromisso com ela tem de ser total. Questão de princípio. Um limite rígido, que separa o aceitável do inaceitável.

No Brasil, a democracia entra na puberdade. Como todo adolescente, se acha plena, invencível. Testa seus próprios limites correndo riscos tolos, bestas. Olha para o passado dos pais com desdém, como aquele passado embolorado que aconteceu com eles, porque são velhos, mas jamais se repetirá com ele, o jovem malandrão.

Nas democracias mais velhas, portanto menos fanfarronas, a institucionalidade é um bem, não a tia chata que você tem de driblar a toda hora para pegar o carro escondido.

É algo com que não se brinca, porque se sabe que qualquer quebra institucional, por aparentemente menor que seja, abre uma brecha para outras maiores e pode levar o barco a afundar.

No Brasil adolescente, um presidente da mais alta Corte da Justiça combina com o presidente do Senado de mudar nas coxas a lei que trata do impeachment e fica tudo por isso mesmo.

Um partido força os limites das instituições até esgarçar seu tecido, insistindo na candidatura à Presidência da República de um preso, condenado em duas instâncias por crimes comuns (corrupção e lavagem de dinheiro), e tudo bem.

Um candidato a presidente e seu filho, deputado federal, dizem que vão resolver os problemas do País “nem que seja a bala” e são aplaudidos por uma turba cada vez mais fanática e mais disposta ao tudo ou nada.

Alberto Goldman: Edson Fachin, que decepção!

- Blog do Goldman

Que espetáculo triste nos deu o Ministro do STF, Edson Fachin, no TSE, ao analisar a inelegibilidade de Lula. Fica a dúvida: comprometimento político com o PT ou imbecilidade?

No primeiro caso seria um ato criminoso que não é aceitável para um membro do Supremo, qualquer tenha sido sua vinculação política antes da nomeação. No segundo caso….

Fachin entendeu que a decisão de um comitê da ONU – um comitê que se reúne três vezes por ano, constituído por 18 especialistas que emite considerações sobre possíveis transgressões aos direitos humanos – tem poderes para interferir nas decisões soberanas do nosso país, inclusive nas decisões do nosso sistema Judiciário.

A decisão do Comitê da ONU sobre Lula – uma medida liminar para ser analisada ninguém sabe quando – foi que sua candidatura deveria ser mantida apesar de todo processo legal que foi respaldado em decisões do Supremo, o mesmo composto, em sua maioria, por ministros indicados por Lula e Dilma.

Ou seja, para Fachin, acima de todas nossas instituições se sobrepõe um comitê de especialistas que ninguém, no Brasil, sabe o quê é nem o quê são. São 18 super-homens sem qualquer voto de brasileiros que teriam todo poder de vida ou de morte.

Imaginem se Lula candidato através desse expediente infame vence a eleição presidencial. Lá adiante, sub júdice, não sabemos quando, decidem os 18 gênios que ele não poderia ter sido candidato. E até essa decisão se ele vai ser confirmado presidente. Seria o caos.

Fachin está pensando em seu país ou eu seus compromissos ideológicos? Ou é apenas um imbecil?

Luiz Carlos Azedo: Sai Lula, entra Haddad

- Correio Braziliense

“O julgamento frustrou as intenções petistas de utilizar todos os prazos possíveis para Lula permanecer como candidato. Mas isso não significa que a estratégia eleitoral do PT tenha fracassado”

Não se pode dizer ainda que a estratégia eleitoral do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para levar o PT de volta ao poder tenha fracassado, uma vez que a impugnação de sua candidatura pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) estava escrita nas estrelas e na Lei da Ficha Limpa. Entretanto, estão dadas todas as condições para o PT transferir os votos cativos de Lula para o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, com a decisão daquela Corte de permitir que o ex-presidente da República, mesmo impugnado e preso, apareça como apoiador de seu substituto nos programas eleitorais de tevê, rádio e internet.

Lula não é um proscrito político num regime de exceção, como pretende fazer crer o PT e muita gente acredita, principalmente no exterior. Lula está preso porque foi condenado a 12 anos e um mês de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex de Guarujá, ou seja, por receber vantagens indevidas no cargo de presidente da República e ocultar seu patrimônio, o que não é incomum na política brasileira. É o mais ilustre condenado pela Operação Lava-Jato, que mandou para a cadeia outros ex-dignatários. Por essa razão, insistir na narrativa do “preso político” no horário eleitoral será uma afronta à democracia e à Justiça eleitoral.

“O Brasil é um Estado democrático de direito. Não estamos sob regime de exceção. Todas as instituições estão em funcionamento regular. O Poder Judiciário é independente. Os juízes de primeira e segunda instâncias são providos em seus cargos por critério exclusivamente técnico, sem vinculação política. A defesa pode perfeitamente alegar erro judiciário, mas não se mostra plausível o argumento de perseguição política”, disse o ministro Luís Barroso, relator do caso, no julgamento que entrou pela madrugada de ontem, em resposta aos argumentos da defesa em favor da candidatura de Lula.

Com o único voto divergente do ministro Édson Fachin (a favor de uma autorização provisória para que Lula concorresse, apesar de considerar o petista inelegível por conta da Lei da Ficha Limpa), a candidatura de Lula foi impugnada por seis a um na sessão extraordinária do TSE. Os ministros decidiram evitar que Lula aparecesse como candidato nos programas oficiais do PT de rádio, tevê e internet, iniciados ontem. De certa forma, o julgamento frustrou as intenções petistas de utilizar todos os prazos possíveis para Lula permanecer na mídia como candidato. Mas isso, como já dissemos, não significa que a estratégia eleitoral do PT tenha fracassado. Vejamos:

A última pesquisa semanal XP-Ipespe que monitora o cenário eleitoral e tem grande influência no mercado financeiro, no último dia 29 de agosto, demonstrou que a capacidade de transferência de votos entre os candidatos do PT é significativa. No cenário com Lula, o petista liderava a disputa com 33% de intenção de votos, seguido por Jair Bolsonaro (PSL), com 21%. Ciro Gomes (PDT) tinha 8%, Marina Silva (Rede) e Geraldo Alckmin PSDB) empatavam com 7%; João Amoedo (Novo), 4%, e Alvaro Dias (Podemos), 3%. Henrique Meirelles (MDB) e Guilherme Boulos (PSOL), 1%. Com Lula fora da disputa, Bolsonaro subia para 23%, Marina Silva para 13%, Ciro para 10%, Alckmin para 9% e Haddad aparecia com apenas 6%, à frente de Alvaro e Amoedo, empatados com 4%. Boulos e Meirelles não se mexiam; o Cabo Daciolo aparecia pela primeira vez, com 1%.

Ricardo Noblat: Apanha por que pediu

- Blog do Noblat | Veja

Bem feito!
Quem mandou a Justiça Eleitoral acocorar-se no último minuto da prorrogação permitindo que partido sem candidato a presidente da República possa dispor de propaganda eleitoral no rádio e na televisão para exaltar um candidato cujo pedido de registro ela mesma negou?

Bem feito! O PT, cujo advogado havia garantindo que jamais procederia assim, usou seu tempo, ontem, no rádio, na televisão e nas ruas para bater fortemente na Justiça e denunciar mais um suposto golpe sofrido pelo encarcerado de Curitiba.

Em sessão aberta, transmitida pela televisão, o Tribunal Superior Eleitoral negou o registro da candidatura de Lula com base na Lei da Ficha Limpa sancionada por ele quando era presidente da República. Depois, em sessão fechada, permitiu ao PT usar o tempo de propaganda do candidato que não tem.

Extraordinário é que a maioria dos sete ministros havia aprovado a suspensão do programa de televisão do PT enquanto ele não escolhesse um novo candidato. Pois não é que voltou atrás? E sem sequer oferecer uma explicação? Talvez por que explicação alguma fosse convincente.

Qual foi a aposta da toga? A plebe ignara com gosto de sangue na boca contra o PT ficaria para lá de satisfeita com a recusa ao pedido de registro da candidatura de Lula. Não ligaria para o resto, ora. O resto era bobagem. Nada que manchasse a imagem de uma Justiça boazinha, indolente e ibérica.

Não digo que a malandragem jurídica (ou política) bateu no teto uma vez que por aqui o teto da malandragem sempre pode ser mais alto. Mas que foi notável a lambança promovida pelas togas, três delas com assento no Supremo Tribunal Federal, lá isso foi, sim senhor.

“Andrade”, repaginado
A voz do dono e o dono da voz
Foi dada a conhecer a versão nordestina do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, em visita à região onde é chamado de “Andrade”, o candidato do PT a presidente que substituirá Lula somente quando Lula permitir, o que ainda irá demorar.

Para divulgação da campanha, a foto foi feita em Garanhuns, interior de Pernambuco, cidade onde Lula nasceu. O autor, Ricardo Stukert, fotógrafo oficial de Lula. Ali, Haddad bateu à porta de parentes de Lula para beijar a mão deles.

“É o candidato que Lula mandou a gente votar?” – perguntou um morador da cidade. Haddad driblou a pergunta.

Elio Gaspari: Gilmar Mendes expôs o tamanho do desastre

- O Globo

Sem o pode-não-pode da Justiça, dificilmente Lula lideraria as pesquisas

Poucas vezes um magistrado foi tão autocrítico e preciso como o ministro Gilmar Mendes quando disse o seguinte:

“Nós já produzimos esse desastre que aí está. Ou as pessoas não percebem que nós contribuímos com a vitimização do Lula? Estamos produzindo esse resultado que está aí”.

Sem o prende-solta de julho e pode-não-pode da Justiça Eleitoral, dificilmente Lula estaria com pelo menos 39% das preferências nas pesquisas do Datafolha. Mais que isso: pode-se garantir que aumentou a sua capacidade de transferir eleitores para Fernando Haddad, tornando-o um provável candidato no segundo turno da eleição.

Quem acha que um confronto Haddad x Bolsonaro ajuda a eleger um ou outro não quer um processo eleitoral, mas um daqueles espetáculos sanguinários que aconteciam no Coliseu de Roma.

O desastre está aí, mas Lula pode ser acusado de tudo, menos de ter sido o causador da barafunda criada pelo Judiciário. Sua vitimização entra agora na última fase, fabricando-se uma eleição presidencial influenciada por um ectoplasma político.

Em outro tempo, Juscelino Kubitschek também foi transformado em fantasma. Era um ex-presidente cujo semicandidato foi derrotado pelo doidivanas Jânio Quadros, que tinha como símbolo eleitoral uma vassoura.

Vale lembrar que o apartamento de JK ficava na avenida Vieira Souto e nele cabiam vários tríplexes do Guarujá. Algo do mito de Juscelino deriva da cena do seu embarque para o exílio com um coronel de arma na mão e de sua figura sorridente entrando num quartel para depor num inquérito policial-militar.

Isso e mais a mobilização financeira do governo para impedir sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, onde sentava-se o general Aurélio de Lyra Tavares, o poeta Adelita e um dos três patetas da Junta Militar de 1969.

(Numa carta ele escreveu “acessoramento” e “encorage”.)

A discussão em torno da presença de Lula na propaganda gratuita é despicienda. Ele estará lá, em áudios e vídeos. Não como o chefe do PT dos escândalos, mas como vítima.

Sem comparar as sentenças que condenaram Lula com a campanha que se fez contra Getúlio Vargas, imagine-se o que seria de sua memória em duas situações:

1. Matou-se sem deixar a carta-testamento.
2. Não se matou, deixou o Catete e foi para São Borja.

Em 1973 tiraram Ulysses Guimarães do ar
A situação em que Lula está hoje nada tem a ver com aquela em que foi colocado Ulysses Guimarães em 1973, quando lançou-se como anticandidato à Presidência da República. Hoje vive-se num Estado de Direito e em 1973 vivia-se numa ditadura. Àquela época a eleição era indireta e estava perdida para o MDB. Hoje, os eleitores decidem.

Vinicius Torres Freire: Emprego, Lula, Bolsonaro e 'Cirina'

- Folha de S. Paulo

Perda de empregos na recessão e violência ajudam a pensar o potencial de votos

Lula da Silva (PT) tem mais votos quanto mais pobre o eleitorado; Jair Bolsonaro (PSL) é o avesso. É o que todo mundo sabe muito bem, até este início da propaganda na TV e no rádio.

Mas é plausível dizer que a perda de empregos na recessão ou o nível de violência de um estado também sejam indícios importantes de voto nessas personagens.

Pesquisas nacionais e regionais indicam ainda que uma entidade chamada "Cirina" teria perfil de votação parecido com o de Lula. "Cirina" é a soma dos votos de Marina Silva (Rede) e Ciro Gomes (PDT) quando o petista sai das pesquisas (26%, contra 22% de Bolsonaro, no mais recente Datafolha).

Trata-se apenas de especulação aritmética, é claro. No caso remoto de haver união de candidaturas, não saberíamos quantos votos "Cirina" perderia (haveria desafetos de Marina ou Ciro em cada eleitorado).

Onde há pesquisas consideráveis, observa-se que Lula tem mais voto quanto menor a renda média de uma região ou estado. Não é o caso de Bolsonaro, que tem votação mais bem distribuída nesse quesito.

Lula tem mais voto quanto mais um estado ou região perdeu empregos nesta crise (entre 2014 e 2017).

O caso de Bolsonaro é exatamente o contrário.

Quanto mais violentos a região ou os estados (pela taxa de homicídios), mais Lula tem voto, ao contrário de Bolsonaro.

Celso Ming: Precarização maior é o desemprego

- O Estado de S.Paulo

Certas expressões são tão repetidas que passam a ser consideradas verdadeiras, sem que antes seu significado tenha passado por um mínimo de análise crítica.

Uma dessas expressões é a tal precarização do trabalho. Até mesmo juízes do Supremo que votaram contra a terceirização irrestrita aferraram-se ao conceito da precarização do trabalho, que acontece, justificaram eles com exibição de estatísticas, nas condições do emprego terceirizado.

Antes de prosseguir, vamos ao enunciado-síntese da Coluna. Precarizadas são as condições do atual mercado de trabalho, situação que não é apenas a do Brasil. Mais precarizados do que os postos de trabalho em empresas terceirizadas é o desemprego, que hoje alcança 12,9 milhões de trabalhadores mais 4 milhões entregues ao desalento no País.

Quem usa o argumento da precarização, em geral, faz a comparação errada. Emprego não precarizado, para essa gente, é o da minoria contratada por grandes empresas, em geral estrangeiras, que garantem todos os benefícios da lei mais alguns. E não a situação da grande massa de trabalhadores brasileiros.

Quase sempre, os sindicatos cuidam dos interesses dessa minoria que goza de empregos de qualidade e não liga a mínima para os desempregados e subempregados. Lutam por melhores salários e melhores condições de trabalho dos que participam dessa elite sindicalizada, e não pela melhora de vida dos que estão ralando por aí.

José Roberto Mendonça de Barros: Será possível retomar o crescimento?

- O Estado de S.Paulo

A vitória do reformismo traria de volta certo crescimento, e relativamente rápido

Todos que acompanham o nosso dia a dia sabem que as marcas deste ano estão sendo a surpresa e a incerteza. Conflitos comerciais que atravessam o globo, greve dos caminhoneiros e a enorme incerteza política acabaram por produzir uma redução nas perspectivas de crescimento.

Abrimos o ano já com alguma desaceleração em relação a 2017, mas os fatores acima mencionados levaram a uma piora no desempenho e nas projeções para o ano. Embora seja claramente positivo que a atividade tenha voltado a crescer após a greve, o crescimento do corrente exercício será modesto (1,5% no máximo).

Assim, a pergunta central que se faz é se existe possibilidade de, findo o processo eleitoral, voltarmos a ter melhoras em 2019.

Uma primeira parte da resposta é, para mim, muito clara: esta campanha caracteriza-se por um embate entre reformistas e populistas, sendo que a novidade deste ano é a emergência de um populismo rombudo de direita. Isso porque a eventual vitória de uma das propostas populistas irá produzir, inequivocamente, uma piora significativa nas principais variáveis econômicas. No curto prazo, no caso da esquerda, e um pouco mais adiante se for a direita.

Entretanto, acredito que a vitória do reformismo poderá trazer de volta certo crescimento, e relativamente rápido. Analisemos por quê.

Míriam Leitão: Na economia há pontos em comum

- O Globo

Há convergência nas propostas econômicas dos principais candidatos para temas sensíveis e polêmicos na economia. O risco mora nos detalhes

Nesta eleição com tantos conflitos e tanta incerteza há uma saudável convergência entre algumas propostas econômicas. Elas não são iguais, contudo, e o risco mora nos detalhes. Todos podem fazer afirmações parecidas, mas se referindo a medidas diferentes entre si. Os candidatos mais competitivos, e seus economistas, têm falado da reforma da Previdência, em criar uma taxação sobre dividendos e em reduzir as renúncias fiscais.

De todos os cinco partidos com maior percentual de intenção de votos nas pesquisas, só o PT não defende uma reforma na Previdência que inclua a idade mínima. O partido fala muito superficialmente sobre o assunto e não dá ao tema a urgência que ele deve ter.

Ciro, Marina, Alckmin e Bolsonaro admitem que é preciso fazer uma reforma da Previdência que tenha, em algum momento, a mudança para o regime de capitalização. A diferença entre eles é quando o novo regime de contas individuais de aposentadoria começa a valer. Ciro Gomes propõe uma redução do atual teto do INSS para quem está contribuindo com indenização através de um título resgatável no futuro e quer que essa travessia de um para outro sistema comece a ser feita. A dúvida sempre foi o custo dessa travessia. Sabe-se que é alto e crescente. Mas esse assunto, que sempre foi considerado tóxico para uma campanha eleitoral, entrou no debate. Como, quando e de que forma trabalhar pelo reequilíbrio do sistema de pensões e aposentadorias não está claro.

Samuel Pessôa: Assessores na Globonews

- Folha de S. Paulo

Conversa demonstra conhecimento de nossos problemas bem superior a 2014

Há duas semanas, de segunda-feira, 20 de agosto, à sexta, 24, a Globonews recebeu, sempre às 23 horas, assessores econômicos dos cinco candidatos mais bem colocados nas pesquisas, para serem sabatinados por vários jornalistas.

Foi consensual, entre os assessores, o apoio a uma proposta de criação de um imposto nacional sobre o valor adicionado, IVA, bem como uma recomposição da carga tributária em uns 2 a 3 pontos percentuais do PIB.

Essa recomposição faria com que a carga, hoje rodando em 31-32% do PIB, voltasse aos máximos de 34% observados no segundo mandato de Lula.

A recomposição viria do fim de algumas isenções --redução dos limites e da abrangência do Simples e reoneração da folha de salários--, bem como de alguma tributação sobre dividendos na pessoa física (prioritariamente das empresas que operam no lucro presumido), aumento do imposto sobre herança e, possivelmente, de uma nova CPMF. Este último item não é consensual.

Outra unanimidade foi a necessidade de atacar as injustiças e os privilégios das aposentadorias do setor público.

O tema previdenciário é prioritário para quatro dos entrevistados. Somente Guilherme Mello, assessor de Lula, não considera tema relevante. Adere à tese do moto perpétuo: problema fiscal se resolve aumentando o déficit público para elevar o gasto. A renda cresce com mais intensidade e, com ela, a arrecadação. Desaparece o problema fiscal.

Após decisão do TSE, PT afronta o Judiciário e insiste em Lula

Com ex-presidente barrado, mas com programa liberado, partido fala em ‘golpe’

Matheus Lara, Ricardo Galhardo, Marianna Holanda e Amanda Pupo | O Estado de S. Paulo

Após o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) barrar a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, condenado e preso na Lava Jato, o PT atacou ontem o Judiciário na TV e nas ruas, insistindo no nome do ex-presidente no jogo eleitoral. No primeiro programa gratuito, o partido classificou a decisão do TSE “como mais um duro golpe” contra a “vontade do povo” e deu mais espaço para Lula do que para seu provável substituto como candidato, o ex-prefeito Fernando Haddad. Os dois dividiram o protagonismo sem que ficasse indicado claramente quem é o presidenciável. Em Garanhuns (PE), Haddad convocou a militância petista a resistir. Na sessão que terminou na madrugada de ontem, o TSE deu dez dias de prazo para troca da chapa, mas autorizou a veiculação do programa do PT desde que Lula não aparecesse como candidato.

Depois da decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que negou o registro da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva – condenado e preso na Lava Jato –, o PT manteve o discurso em favor dele e atacou a Justiça no programa eleitoral na TV e nas ruas, insistindo na postulação do ex-presidente. 

Em Garanhuns (PE), o ex-prefeito Fernando Haddad, provável substituto de Lula nas urnas, pediu empenho da militância na defesa do ex-presidente. No palanque eletrônico, Lula, ao lado de Haddad, foi o protagonista, mas teve mais exposição que o vice da chapa petista.

A propaganda da sigla foi aberta com uma mensagem que classificava a decisão do TSE como “mais um duro golpe” contra “a vontade do povo”. “A coligação ‘O Povo Feliz de Novo’ vai entrar com todos os recursos pelo direito de Lula de ser candidato.”

PT insiste em Lula e critica Justiça no programa da TV

No rádio, na TV e nas ruas, PT desafia TSE e mantém Lula como candidato

Segundo defesa, não deu tempo de mudar programas; Haddad diz que ex-presidente segue na disputa

Géssica Brandino , João Valadares , Marina Dias , Joelmir Tavares eReynaldo Turollo Jr. | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO , GARANHUNS (PE) E BRASÍLIA - No primeiro dia de campanha já com a candidatura de Lula indeferida, o ex-presidente ainda apareceu como o nome do PT à Presidência nos programas eleitorais e na campanha de rua de seu vice, Fernando Haddad (PT), ao longo deste sábado (1º).

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral), em sessão encerrada já na madrugada deste sábado, barrou o registro do ex-presidente e decidiu que ele só pode aparecer no horário eleitoral na condição de apoiador, não na de candidato.

O que se viu, no entanto, foi a menção a Lula como o cabeça da chapa nos programas levados ao ar no rádio pela manhã e à tarde. No vídeo exibido no horário eleitoral da TV, à tarde e à noite, o partido disse que "entrará com todos os recursos para garantir o direito de Lula ser candidato".

O programa televisivo não identificou explicitamente nem Lula nem Haddad como o candidato a presidente. O ex-prefeito de São Paulo, que no momento está impedido de ser apresentado na propaganda como vice de Lula, apareceu reiterando "um juramento de lealdade a Lula" e prometendo "não descansar".

Na sequência, a letra do jingle dizia: "É o Lula, é Haddad, é o povo, é o Brasil feliz de novo". O ex-presidente apareceu tanto em imagens quanto em narrações.

As aparições, porém, não significam que houve desrespeito à decisão do TSE, já que há questões técnicas relacionadas à veiculação das propagandas. As emissoras responsáveis por gerar os programas recebem o material a partir das 7h. Para que o conteúdo seja exibido, é necessário que chegue no mínimo seis horas antes.

Com Lula barrado, PT confronta Justiça Eleitoral

Partido manterá exposição de ex-presidente e não indicará Haddad imediatamente

Apesar da decisão do TSE, que, por 6 votos a 1, negou o registro da candidatura do ex-presidente Lula, o PT resiste a admitir que ele está fora da eleição e ainda não oficializou Fernando Haddad como o nome do partido à Presidência. A estratégia é usar os próximos dias de propaganda eleitoral para criticar a Justiça, fazendo de Haddad uma espécie de apresentador do programa. O plano do PT será discutido com o próprio Lula na cadeia, amanhã, em Curitiba.

Sem Lula, PT decide atacar veto do TSE

Partido manterá exposição de ex-presidente e não indicará Haddad imediatamente

Sérgio Roxo | O Globo

GARANHUNS (PE - Embora o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já tenha barrado a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PT resiste a admitir que ele está fora da eleição e não pretende anunciar de imediato sua substituição pelo vice na chapa, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad. A estratégia é utilizar os próximos dias de campanha em rádio e TV para confrontar a decisão da Justiça Eleitoral e reforçar a exposição da imagem de Lula, como já ocorreu no primeiro dia de propaganda. Também quer usar este período para o que chama de “transição” do candidato inelegível para o nome que efetivamente estará nas urnas no dia 7 de outubro.

O plano será discutido amanhã, em Curitiba, com o próprio Lula, que receberá a visita de Haddad na prisão. Caso o próprio ex-presidente não altere o planejamento, o partido atuará em três frentes antes de anunciar Haddad. Além do uso ostensivo da imagem de Lula, o PT destinará seus dois minutos e 20 segundos de tempo no horário eleitoral para sustentar que o TSE descumpriu recomendação do Comitê de Direitos Humanos da ONU para que a participação de Lula na disputa fosse assegurada. A tese, contudo, foi rechaçada por seis dos sete ministros da Corte eleitoral, sendo adotada apenas pelo ministro Edson Fachin.

Normalidade restituída: Editorial | O Estado de S. Paulo

A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de impugnar a candidatura do petista Lula da Silva à Presidência da República restitui a normalidade à campanha eleitoral, condição indispensável para a plena realização de seu fim, qual seja, a escolha democrática e legítima do próximo presidente.

A candidatura de Lula da Silva constituía uma afronta à lei. Conforme entenderam seis dos sete ministros do TSE na votação que decidiu a querela, na sexta-feira passada, a questão era simples e seu desenlace, igualmente singelo: um candidato condenado por órgão judicial colegiado não pode pretender ocupar cargo eletivo, ainda mais a Presidência da República. É o que está claramente exposto na Lei Complementar 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa.

Se mais argumentos ainda fossem requeridos para corroborar a clareza solar da matéria, bastaria observar o teor do único voto em contrário proferido no TSE, o do ministro Edson Fachin. Para Fachin, Lula, de fato, está inelegível, conforme expresso na Lei da Ficha Limpa. No entanto, em seu exótico entendimento, o Brasil está obrigado a respeitar uma “decisão” - expressão usada pelo ministro - do Comitê de Direitos Humanos da ONU sobre o caso. Este era, aliás, o único argumento a sustentar a tese da defesa, pois outro não havia, dada a inapelável letra da Lei da Ficha Limpa.

A fragilidade do argumento é gritante e espanta que um ministro do TSE, com assento inclusive no Supremo Tribunal Federal, o tenha acolhido a sério. Em primeiro lugar, não se trata de “decisão”, uma vez que o tal órgão da ONU não tem poder nenhum de decidir o que quer que seja, pois se trata apenas de um comitê estritamente técnico, que avalia pleitos de indivíduos que alegam ter tido seus direitos humanos violados e, a partir de seu exame, faz recomendações aos Estados envolvidos. No caso de Lula, o comitê recomendou que o petista pudesse concorrer à Presidência até o julgamento final de todos os recursos legais, a fim de preservar seu direito de ser votado - direito este que a Lei da Ficha Limpa, em pleno vigor, já lhe cassou, graças à sua condenação, em segunda instância, pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.

TSE confirma que Lei da Ficha Limpa vale para todos: Editorial | O Globo

No caso Lula, ficou reforçada a segurança jurídica de uma eleição da qual participam 143,7 milhões

Na essência, cumpriu-se a Constituição, que impõe (Artigo 14, parágrafo 9º) a proteção da moralidade como valor para o exercício do mandato eletivo “considerada vida pregressa do candidato”. Foi com ampla maioria, de seis votos a um, que o Tribunal Superior Eleitoral reafirmou a coerência da Lei da Ficha Limpa com a Carta.

Considerou-a inequívoca quanto à inelegibilidade de indivíduo condenado, com decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por crimes contra a administração pública e o patrimônio público, e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores.

O princípio constitucional é o de que a mesma regra vale para todos. Sua aplicação resultou no que era previsível: Lula está inelegível, porque foi condenado em colegiado de juízes federais a 12 anos e um mês de prisão, pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

O ex-presidente está preso em Curitiba. Já não pode disputar mandato, participar de atos de campanha, figurar como candidato na propaganda no rádio e na televisão, na internet, em pesquisas ou, ainda, ter seu nome inscrito na urna eletrônica.

Confirmou-se a coerência do sistema instituído: a decisão do TSE seguiu o entendimento prévio do Supremo Tribunal Federal. Assim, ficou reforçada a segurança jurídica em processo eleitoral do qual participam 143,7 milhões de cidadãos.

Ela tem salvação: Editorial | Folha de S. Paulo

Reformas paulatinas podem reverter o descrédito na política, ao tornar o sistema eleitoral mais compreensível

A cinco semanas do primeiro turno de uma eleição presidencial tão imprevisível quanto decisiva para o soerguimento do país, a política nacional experimenta níveis insólitos de descrédito. Um terço do eleitorado expressa desinteresse pela disputa; os candidatos ostentam índices de rejeição maiores que os de intenção de voto.

Com a economia estagnada e as marcas da desigualdade social evidentes nas ruas, parece ter ficado mais difícil acreditar na capacidade das instituições de solucionar problemas debatidos há décadas.

O combate à corrupção e a contínua exposição de escândalos nos últimos anos contribuíram para aumentar ainda mais o fosso que separa os eleitores de seus representantes em Brasília.

O período inaugurado pela promulgação da Constituição de 1988 é o de maior estabilidade democrática em nossa história, mas dois presidentes eleitos desde então foram alvo de impeachment —sinal da dificuldade para formar e manter bases de apoio parlamentar.

Há nada menos de 25 partidos com assento na Câmara dos Deputados, o que torna custosas as negociações para viabilizar iniciativas do governo que dependam do aval do Legislativo, multiplicando as frestas abertas para a fisiologia e o desvio de recursos.

O Congresso promoveu mudanças frequentes na organização das legendas e nas regras do jogo eleitoral nos últimos anos, mas a maioria dessas iniciativas foi desenhada para atender a interesses dos caciques partidários, e não para tornar o sistema mais eficiente.

Tom Jobim e Dorival Caymmi: Suite dos pescadores

Affonso de Sant’Anna: Os desaparecidos

De repente, naqueles dias, começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.

Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricots ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluiam
- mal ligavam o tôrno do dia.

Desaparecia-se.
Desaparecia-se muito
naqueles dias.

Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia.
Desaparecia-se
até a primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes esvaneciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, arefeitos, constatar no além,
como os pescadores partiam.
Desaparecia-se.
Desaparecia-se muito
naqueles dias.

Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os da platéia
enquanto riam.
Não, não era fácil ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
- desapareciam.
Se fosse ao tempo da Bíblia, eu diria
que carros de fogo arrebatavam os mais puros
em mística euforia.

Não era. É ironia.
E os que estavam perto, em pânico, fingiam
que não viam. Se abstraíam.
Continuavam seu baralho a conversar demências
com o ausente, como se ele estivesse ali sorrindo
com suas roupas e dentes.

Em toda família à mesa havia
uma cadeira vazia, a qual se dirigiam.
Servia-se comida fria ao extinguido parente
e isto alimentava ficções
- nas salas e mentes
enquanto no palácio, remorsos vivos boiavam
- na sopa do presidente.
As flores olhando a cena, não compreendiam.
Indagavam dos pássaros, que emudeciam.
As janelas das casas, mal podiam crer
- no que viam.
As pedras, no entanto,
gravavam os nomes dos fantasmas
pois sabiam que quando chegasse a hora
por serem pedras, falariam.

O desaparecido é como um rio:
- se tem nascente, tem foz.
Se teve corpo, tem ou terá voz.
Não há verme que em sua fome
roa totalmente um nome. O nome
habita as vísceras da fera
Como a vítima corrói o algoz.

E surgiam sinais precisos
de que os desaparecidos, cansados
de desaparecerem vivos
iam aparecer mesmo mortos
florescendo com seus corpos
a primavera de ossos.

Brotavam troncos de árvores,
rios, insetos e nuvens em cujo porte se viam
vestígios dos que sumiam.

Os desaparecidos, enfim,
amadureciam sua morte.

Desponta um dia uma tíbia
na crosta fria dos dias
e no subsolo da história
- coberto por duras botas,
faz-se amarga arqueologia.

A natureza, como a história,
segrega memória e vida
e cedo ou tarde desova
a verdade sobre a aurora.

Não há cova funda
que sepulte
- a rasa covardia.
Não há túmulo que oculte
os frutos da rebeldia.
Cai um dia em desgraça
a mais torpe ditadura
quando os vivos saem à praça
e os mortos da sepultura.