quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Cristiano Romero: Um mundo perigoso

- Valor Econômico

'O poder traz grande responsabilidade', ensina Uncle Ben

No movimento pendular da história, o momento atual, marcado por extremismos que julgávamos superados, se mostra particularmente desafiador. Não há equilíbrio em lugar algum. Na verdade, não há sequer divisão: a hegemonia de um grupo, de uma ideia, parece prescindir da existência do outro. Nestes tempos de intolerância, a democracia é vista pelos radicais como uma forma de chegar ao poder para... desmoralizá-la. Pacificação é prática em desuso: os vencedores cultivam o ódio e pregam a cizânia.

Não se trata de saudosismo, mas é admissível pensar que, diante dos antagonismos da atualidade, as vicissitudes do mundo dividido entre Estados Unidos e a extinta União Soviética (URSS), com a Europa Ocidental quase socialista (ou social-democrata) no meio e a Ásia dormindo em berço esplêndido, enquanto o Japão se "convertia" ao Ocidente, eram aceitáveis. Durante a Guerra Fria, o mundo se amparou num equilíbrio que evitava os extremos nos dois lados.

Barbaridades ocorriam lá e cá. Na metade soviética, ditaduras grassavam em meio à derrocada da utopia comunista, que ao longo do tempo se mostrou incapaz de satisfazer às necessidades básicas de seus povos. Na década de 1980, os americanos perceberam que, se conseguissem sufocar economicamente a economia da URSS, o regime ruiria. A isca lançada foi o "Guerra nas Estrelas", programa que acelerou a corrida armamentista. Para medir forças com os EUA, os soviéticos elevaram os gastos com armas, fragilizando a combalida economia e, assim, precarizando a vida da população. A dissolução do império tornou-se previsível.

No Ocidente, os americanos adotaram no pós-Guerra duas estratégias distintas com o objetivo de impedir o avanço do comunismo: na Europa, financiaram a reconstrução de nações devastadas pelo conflito, favorecendo o florescimento de regimes democráticos; nas Américas Central e do Sul, apoiaram regimes ditatoriais cruéis, que deixaram marcas profundas e alimentaram o forte sentimento anti-americano que dificulta aproximação efetiva entre países como Brasil e EUA.

Um parêntesis: a ditadura brasileira matou muito menos (424 pessoas, segundo levantamento do ex-ministro Nilmário Miranda e do jornalista Carlos Tibúrcio) que a argentina (não há consenso, mas fala-se em 30 mil) e a chilena (40,2 mil), mas isso não a torna "melhor" nem muito menos branda. Ninguém, nem o mais cruel dos criminosos, deve morrer sob a custódia do Estado. A disputa sobre o número de vítimas é infame. As palavras "apenas", "somente" e "só" são igualmente inadequadas. Ditaduras são a negação da liberdade, e sem esta não há razão para viver.

O fato é que, terminada a Guerra Fria no início da década de 1990, os americanos sucumbiram ao gostinho de serem a única superpotência. Esqueceram-se da lição dada por "Uncle Ben" ao sobrinho Peter, o Homem Aranha: "o grande poder vem [acompanhado] de grande responsabilidade" - a frase é atribuída a personagens da Revolução Francesa e a políticos americanos como Thomas Francis Gilroy, prefeito de Nova York que, antes de assumir o cargo em 1893, a teria pronunciado em entrevista ao "The New York Times".

Em vez de ter adotado imediatamente o "soft power" e ajudado a ocidentalizar a Rússia, como fizeram com o Japão, os americanos os abandonaram à própria sorte. Comemorar a dissolução da URSS, fato que abalou fortemente a autoestima dos russos, foi um erro. A transição desordenada de um regime comunista e autoritário para outro, capitalista e "democrático", estimulou o surgimento de máfias e a demanda por políticos fortes e tirânicos. Graças à enorme abundância de recursos naturais do país, bilionários "sem governança" surgiram da noite para o dia e a combinação de tudo isso envolveu a Rússia, carregada de ogivas nucleares, numa densa nuvem de incerteza.

O mundo se tornou mais perigoso. O presidente Donald Trump parece atacar o "inimigo" errado. A China de hoje foi projetada pelos americanos a partir da aproximação histórica que Henry Kissinger, secretário de Estado de Richard Nixon, negociou com o governo de Mao Tsé-Tung no início da década de 1970. Rompidos com a URSS, os chineses precisavam de ajuda e os americanos enxergaram uma oportunidade. Trazer a China para sua órbita, em plena Guerra Fria, ajudaria, por sua vez, a enfraquecer ainda mais o bloco comunista.

Depois da morte do líder comunista, em 1976, a China pôs em prática um longo e paciente processo de reconstrução que resultou no que vemos hoje - segundo maior PIB do mundo, classe média de 400 milhões de viventes nas províncias ricas do Sul, maior consumidor de commodities etc. Talvez, seja possível dizer que o "retorno" da China à economia mundial, produzindo barato e agora, diz-se, bem, foi um dos impulsos da globalização, que tirou mais de um bilhão de pessoas da pobreza, revolucionou a forma como as empresas produzem e, agora, é questionada... pelas nações ricas.

Trump não quer necessariamente levar de volta para os EUA os empregos que os americanos perderam por causa do avanço chinês. Isso não seria necessário porque a economia americana passa por nova revolução, de caráter tecnológico e energético - a autossuficiência em petróleo está barateando os custos de produção e isso tem incentivado o retorno de indústrias. Trump sufoca a China por temer sua emergência geopolítica. A esta altura do campeonato, a tática soa contraproducente - a guerra comercial pode precipitar uma recessão mundial a partir da própria economia americana, pouco mais de uma década após a gravíssima crise mundial de 2008.

O destino da China é ser grande e abandoná-la agora é perigoso. O Partido Comunista chinês se sustenta na exuberância capitalista das províncias do Sul. Mas há 1 bilhão de chineses longe do paraíso, vivendo no interior e sem direito de ir e vir. O equilíbrio é frágil e a maior dificuldade histórica dos chineses sempre foi manter a integridade de seu território, em vez de expandi-lo. Obviamente, quem cresce, logo, aparece...

Com a Europa fragilizada, assistindo à ascensão de radicais de direita em países como França e Alemanha e ao inacreditável Brexit, exemplo de como não se deve cochilar mesmo na mais antiga democracia (Reino Unido), o mundo perdeu seus poderes moderadores. Para completar, os EUA não respeitam mais as instituições, como ONU, Banco Mundial, FMI e OMC, que ajudaram a criar no pós-Guerra com um objetivo: evitar a possibilidade de um novo confronto em escala mundial. Triste planeta...

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