domingo, 20 de janeiro de 2019

Luiz Carlos Azedo: A montanha mágica

– Correio Braziliense

Interessante a analogia feita por um dileto amigo, Arlindo Fernandes, entre a viagem do presidente Jair Bolsonaro a Davos, acompanhado do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do chanceler Ernesto Araujo, e o famoso romance do escritor alemão Thomas Mann que empresta o título à coluna, cuja história se passa exatamente naquela cidade dos Alpes, na Suíça. Segundo ele, a luta instalada dentro do governo, assunto sobre o qual conversávamos, se parece muito com a disputa entre dois personagens do romance, o humanista e enciclopedista Lodovico Settembrini e o jesuíta totalitário Leo Naphta, que protagonizam um choque entre ideias liberais e conservadoras junto ao jovem engenheiro naval alemão Hans Castorp.

Mann começou a escrever A montanha mágica em 1912, quando sua mulher Katharina Mann (Katia) foi internada num sanatório de Davos, para se curar de uma tuberculose. Três anos depois, indeciso sobre os rumos do romance, interrompeu a obra. Havia apoiado a Primeira Guerra Mundial, porque seria “a guerra para terminar todas as guerras”, e estava em conflito com o próprio irmão Heinrich, também escritor, em relação ao papel da Alemanha e à própria guerra. Thomas defendia uma Alemanha unificada, poderosa e zelosa de sua cultura; o irmão desprezava o provincianismo autoritário e acrítico dos alemães à época. Após a guerra, Thomas Mann termina de escrever seu romance, já com uma visão mais crítica sobre tudo o que havia ocorrido; mais tarde, se posicionaria contra a II Guerra Mundial e a própria Alemanha. O romance também reflete esse embate de ideias com o irmão.

O Sanatório Internacional de Berghof é um estabelecimento fictício, vizinho à antiga e luxuosa casa de Repouso Schatzalp, que inspirou o escritor alemão e, por isso, costuma receber levas de leitores-turistas fascinados com o livro. Virou hotel em 1954, como o Waldhotel, o antigo Waldsanatorium, onde Katia Mann, mulher de Thomas Mann, se internou em 1912. A visita que o romancista fez à esposa por três meses o inspirou a escrever. Personagem principal do romance, Hans Castorp é um jovem alemão com os seus 20 anos, prestes a ter uma carreira naval em Hamburgo, sua cidade natal, que viaja para visitar seu primo tuberculoso Joachim Ziemssen, num sanatório em Davos.

Durante sua longa permanência, conhece personagens que representam um microcosmo do pensamento do pré-guerra na Europa. Além de Setembrini e Naphta, a hedonista Mynher Peerperkorn e Madame Chauchat, por quem se apaixona. Após sete anos, antes de ir para a guerra para morrer como um soldado anônimo, Castorp descobre a arte, a cultura, a política, a fragilidade humana e o amor; o tempo, a música, o nacionalismo, as questões sociais e as mudanças. Todas as ideias do século XX estão presentes no romance, que é considerado uma “obra de formação”.

Onde está a analogia? O italiano Lodovico Settembrini representa o humanismo e o iluminismo, atribui o progresso humano à ciência, defende a democracia liberal e acredita no livre-arbítrio. Leo Naphta, cristão novo, interrompeu os estudos teológicos na Companhia de Jesus por causa da tuberculose, mas vê a fé como o sentido da vida e das ações. Defende os atos sangrentos cometidos pela Igreja ao longo da história, vê na ciência e nas explicações racionais os horrores das rebeliões liberais, como a Revolução Francesa.

De certa forma, essas duas tendências estão representadas no governo Bolsonaro, por alguns de seus integrantes: a primeira, pelos ministros Paulo Guedes (Economia), Sérgio Moro (Justiça), Osmar Terra (Cidadania), Teresa Cristina (Agricultura), principalmente; a segunda, por Ernesto Araujo (Relações Exteriores), Ricardo Velez-Rodriguez (Educação) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), sobretudo. O predomínio de uma ou outra no governo dependerá muito do papel dos militares e da cabeça de Bolsonaro, no exercício da Presidência da República.

A viagem a Davos pode fazer bem a Bolsonaro, pois lá serão debatidas ideias novas para uma situação de crise da ordem de liberal, num mundo que passa por grandes transformações tecnológicas e um enorme desajuste econômico e social entre as nações mais avançadas, as emergentes e as que foram deixadas para trás. O grande sanatório geral descrito por Thomas Mann em seu romance parece estar de volta à política mundial, com sinais trocados.

A partir de quarta-feira, 2.340 pessoas de 89 países, que compõem a elite econômica e política mundial, estarão confinadas num centro de conferências, cercadas de neve e seguranças por todos os lados, durante cinco dias, até o dia 29. A guinada ultraliberal do Brasil na economia desperta interesse, o antiglobalismo da nova política externa, um grande espanto. As estrelas do encontro serão a Índia, cujo avanço econômico retira da miséria milhões de cidadãos por ano; e a China, que assumiu a linha de frente da globalização. O presidente norte-americano Donald Trump, com a crista baixa por causa da crise com o Congresso norte-americano, não vai a Davos nem mandará representantes; a primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, balançando no cargo por causa do Brexit, também cancelou a participação. 

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